Em nova peça da Sutil Companhia, homem à beira da morte vira estrela de reality show
Imagine que você acaba de ser diagnosticado com uma doença terminal e que pode morrer a qualquer momento. O que você faria? Buscar uma cura alternativa, tentar consertar os erros de seu passado, escrever um livro de memórias ou transformar sua morte em um reality show? Em "O Livro de Itens do Paciente Estevão", peça da Sutil Companhia de Teatro que estreou na semana passada no Sesc Belenzinho, o protagonista interpretado pelo ator Leonardo Medeiros vive todas essas situações em quase cinco horas de espetáculo.
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- http://entretenimento.uol.com.br/enquetes/2012/09/15/por-que-voce-assiste-a-reality-shows.js
Dividida em duas partes, Os Princípios e Os Domínios, a peça tem seu momento mais tenso quando Estevão parte em busca da cura em um lugar chamado Centro de Recuperação de Almas, uma comunidade comandada pelo "líder espiritual" Adolfo Henrique, um sádico com fortes tinturas nazistas. Interpretado pelo ator Guilherme Weber, o líder instiga Estevão a escrever suas memórias, ou melhor, descrever sua vida em itens.
Weber, que também é um dos criadores do espetáculo e da Sutil Companhia junto ao diretor Felipe Hirsch, conversou com a reportagem do UOL nessa sexta-feira (14), poucos minutos antes de entrar em cena. Para ele, a grande metáfora da peça é que "viver é uma doença terminal". Leia a entrevista:
UOL - A peça fala de alguns "itens" da nossa vida, como o sadismo, a mortalidade e a imortalidade e fala também da onda dos reality shows. Você acha que todo telespectador de reality show é um sádico?
Guilherme Weber - Não acho que todo telespectador de reality seja um sádico, mas um dos lugares do reality show é você dar vazão ao seu lado sádico, que inevitavelmente é um aspecto que talvez todos tenhamos. É um dos lugares selvagens e primitivos da nossa alma que o reality show desperta.
Tem um diálogo do personagem Bob, quando ele recepciona o Estevão no estúdio do reality, em que ele diz: "As pessoas estão cansadas da realidade e também estão cansadas da ficção. Foi só uma questão de tempo para nós descobrirmos o que viria a seguir." O que vem a seguir?
Os realities têm também aquilo de você transformar em miséria o que você não pode atingir. "Mulheres Ricas" tinha um pouco disso. Ridicularizavam tanto aquelas mulheres, que isso reduzia a angústia da classe média de saber que eles nunca vão atingir aquele status social.
Talvez a gente esteja vivendo esse casamento entre realidade e ficção com a vida por meio das redes sociais. As redes sociais viraram um palco onde essas duas expressões se encontram. Onde talvez seja possível de se conhecer alguém por aquilo que ele quer parecer ser. Uma postagem talvez diga mais sobre ele do que ele é realmente. São esses caminhos sutis de uma postagem que não é sofisticada o suficiente para ser arte, mas que tem muita autoconsciência para ser um mero post. Tem máscara, tem tentativa de criação de personalidade. A internet ainda é um campo a ser explorado profundamente. Tem uma subcultura cheia de subculturas.
E por que você acha que as pessoas se cansaram da ficção? A ficção sempre foi o "lugar" em que você se "realizava" por procuração...
De alguma maneira, os realities e a fome por realidade estão varrendo os artistas. Como se os artistas não dessem mais conta dos sonhos, das vazões e das obsessões dos seres humanos. Um pouco do cansaço da ficção é talvez fruto de uma falta de vocabulário sensível e intelectual das pessoas, da classe média em especial, de se colocar como protagonista da arte. Você precisa ter vocabulário para criar paralelos entre a realidade e a ficção. E os realities e a representação da realidade vieram de uma necessidade muito objetiva da classe média e da juventude. A juventude já vinha expressando isso por meio do videogame, a narrativa do videogame é atender à emergência do jovem em se colocar como protagonista da história, assim como a relação do homem comum com o homem do reality. É como se o homem comum da ficção e da literatura ainda estivessem encastelados em um pedestal inacessível. Por mais comum que seja um personagem como o Rakólnikov [do romance "Crime e Castigo"], ele é um personagem da alta literatura, então pode ser que por isso ele não atenda ao jovem e à classe média em sua necessidade de reconhecimento.
Eu recomendei o espetáculo a um amigo e contei a ele a premissa da peça: um homem que é diagnosticado com uma doença terminal que ninguém sabe dizer o que é, apenas que ele pode morrer a qualquer momento. Ele então me perguntou: "Como sabem que é terminal? Viver é uma doença terminal..."
Sim, total! A grande metáfora dessa situação é a metáfora sobre a mortalidade. Estamos todos morrendo. Só não sabemos como, nem por que. Então, quando você define grupos como moribundos, como os soropositivos que hoje têm uma sobrevida gigante, a própria palavra "sobrevida" o destaca de um ser humano dito "normal", mas estão todos morrendo e nenhum dos dois sabe quando será. A grande angústia do paciente Estevão é o homem frente a sua mortalidade. O grande drama do ser humano é a consciência da mortalidade, antes do amor, da liberdade, do sexo.
O Adolfo Henrique é um líder espiritual?
Sim, embora esse termo tenha perdido um pouco seu sentido original. Hoje um líder espiritual é uma pessoa que tenha grande capacidade de manipulação. Essa junção de política e religião que está acontecendo agora nas eleições municipais aqui em São Paulo é um forte indício disso. Líder espiritual na atualidade e também na peça é a pessoa que consegue manipular a sua histeria. Mas que às vezes faz você se afundar nas suas neuroses e no seu medo. E dentro desse raciocínio é só a dor física que consegue libertar.
De onde saiu a trilha sonora do espetáculo?
Saiu de um profundo estudo do Felipe sobre essa gravadora chamada Muzak, que se especializou em produzir as chamadas "músicas de elevador". Que é uma música escapista. Ela despejou no mercado milhões de músicas e versões de músicas para grandes espaços e para espaços corporativos também, com guitarras havaianas, som de mar, para que te transporte para um outro lugar, mais feliz. Um escapismo sonoro e também uma falsificação do ambiente árido, com sons da natureza. Também falsificação de sentimentos, que é algo de que o espetáculo fala. Então o cenário do espetáculo é absolutamente árido, mas se transforma por meio do som. É um cenário sonoro.
Como vocês chegaram a uma peça de cinco horas?
A peça chegou a cinco horas. Em nenhum momento a gente definiu isso. É uma vastidão de temas muito grande e é uma narrativa épica porque você precisa acompanhar esse heroi em diferentes fases da vida dele para que você realmente consiga se conectar com ele. Você precisa vê-lo na sua fragilidade, na sua falsa esperança, no seu cinismo, no seu desespero, na sua negação da condição... A duração de uma obra é um estereotipo. A obra tem o tempo que ela precisa ter. Você não é obrigado a ficar as cinco horas. Depende do quanto você está disponível.
Uma das funções do reality é fazer a pessoa se conectar com o que há de mais bárbaro e selvagem. A pessoa se priva de comer, aí você fica assistindo ela morrer de fome, ela é amarrada, pendurada... É uma expressão de puro sadismo.
Não é meio paradoxal isso de você não aguentar uma peça de cinco horas, mas assistir por 24 horas o “pay per view” do "BBB"?
Na verdade é a concentração que determinada coisa exige. Pra assistir um reality você não precisa se concentrar muito pra que aquilo tenha um valor. Você pode simplesmente fritar na frente daquilo, como você também pode fazer daquilo uma grande metáfora para a realidade e fazer disso um exercício intelectual profundo. A peça pede seu comprometimento. Mas esse assunto de cinco horas se colocou na frente da peça. As portas do teatro estão abertas, não estão trancadas. Você pode fazer um recorte do espetáculo se você quiser. Agora a narrativa não foi concebida para estimular um público em cinco horas.
Você assiste a reality shows?
Inevitavelmente em algum momento você acaba assistindo. Vi a primeira "Casa dos Artistas", mas acho que os realities seriam mais interessantes se tivesse gente mais interessante neles. Imaginem um reality com o Ferreita Gullar, a Hilda Hilst, Dorothy Parker... Ia ser uma delícia. Mas reality é feito para a classe média, por isso as pessoas são simplórias para dar conta de níveis simplórios de identificação.
As pessoas assistem realities para se sentirem melhores consigo mesmas?
Eu acho que sim. Porque quando você se depara com vidas muito miseráveis, como as mostradas em "Changing Homes", The Nanny", com aquela crianças horrorosas, também tem isso de você se colocar e dizer "nossa, na minha casa não seria assim" ou "nossa, que bagunça essa casa" ou "que gorda essa mulher, que banana esse homem", tem isso de, com a miséria do outro, você se sentir um pouco melhor. E tem também aquilo de você transformar em miséria o que você não pode atingir. "Mulheres Ricas" tinha um pouco disso. Ridicularizavam tanto aquelas mulheres e as mediocrizavam tanto, que isso reduzia a angústia da classe média de saber que eles nunca vão atingir aquele status social.
Você acha que chegaremos a um ponto de transformarmos a morte em um reality show, como na peça?
Nós já chegamos a isso. Teve um reality show, que não sei se passou no Brasil, era um cara morrendo de câncer. E o programa acompanhava ele durante todo o processo. Era quase um docudrama. Quando a Amy Winehouse estava viva, havia um site de apostas, com prêmios altos em dinheiro, em que as pessoas tentavam adivinhar em dia ela morreria. Isso é o fetiche total pela morte. Uma das funções do reality é fazer a pessoa se conectar com o que há de mais bárbaro e selvagem. A pessoa se priva de comer, aí você fica assistindo ela morrer de fome, ela é amarrada, pendurada... É uma expressão de puro sadismo.
"O Livro de Itens do Paciente Estevão"
Onde: Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1.000 - Belém).
Quando: até 21 de outubro com apresentações às sextas e sábado às 18h e aos domingos às 17h.
Ingressos: R$ 24 (inteira), R$ 12 (meia) e R$ 6 (associados ao Sesc).
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