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Lygia Pape estrela principal mostra de arte brasileira do ano no exterior; exposição virá ao Brasil

MARIO GIOIA<br>Colaboração para o UOL, em Madri

12/07/2011 07h00

“Trazer a existência poética ao nível do cerne, inundar a existência do fazer poético: inundar.” Uma das passagens que faz parte de documento exibido na mais importante mostra da fluminense Lygia Pape (1927-2004) atesta como a artista conseguia transitar por variadas linguagens -- da mais ligada às artes visuais à escrita. No trecho, ela apresenta o trabalho “Divisor”, feito em 1968 e reencenado na 29ª Bienal de São Paulo, no ano passado, e um dos indícios da intensa revalorização da artista. Tema de mostra no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri -- exposição que virá ao Brasil --, ela ganhará em 2012 um pavilhão em Inhotim (MG), atualmente um dos centros de arte contemporânea mais influentes no Brasil.

Hoje, o documento escrito por Pape, fotografias da performance de 1968 e vídeo que registra sua versão de 2010, junto de outras 249 obras -- entre objetos, pinturas, filmes, cartazes, instalações e gravuras -- formam a mais destacada exposição, neste ano, de uma artista brasileira em âmbito mundial. O Reina Sofía, uma das principais instituições de arte na Europa, sedia até 3 de outubro “Espaços Imantados”, a grande retrospectiva de Pape. O conjunto de obras segue para a Serpentine Gallery, em Londres, já em dezembro. Depois, aporta em São Paulo, em data a definir, na Pinacoteca do Estado.

A obra da fluminense, assim, parece ter definitivamente recebido a atenção do mundo da arte. Antes da Bienal de São Paulo, Pape já havia ganhado um tributo de peso. O sueco Daniel Birnbaum e o alemão Jochen Volz (também curador de Inhotim) escolheram para abrir a mostra central da 53ª Bienal de Veneza, em 2009, “Tteia”, instalação composta por fios dourados e prateados de autoria da artista, inicialmente montada em 1976 (veja foto abaixo).

A novidade agora é que a instalação ganhará um pavilhão próprio em Inhotim, a ser inaugurado entre abril e maio do ano que vem, de acordo com Volz. “Hélio e Lygia têm uma ideia de ocupação de espaço muito importante, revolucionária mesmo. ‘Tteia’ tem tudo a ver com Inhotim, que possui muitos ambientes, instalações”, afirma o curador alemão ao UOL.

Segundo Volz, “Tteia” foi uma das primeiras obras que planejou para o espaço principal de Veneza. “Assim como o título da mostra, ‘Fazer Mundos’, guardava uma ambiguidade em várias línguas, a obra de Lygia jogava com o construtivo e o espiritual, com algo abstrato. Foi para muitos uma surpresa.”  

Pape foi uma artista múltipla. Seus trabalhos se distribuíram nos mais variados meios e linguagens

Lauro Cavalcanti, diretor do Paço Imperial

A individual de Pape no museu espanhol é a “cereja do bolo” que atesta o prestígio da artista e, ao contrário de outras grandes exposições dedicadas a brasileiros feitas recentemente -- a de Hélio Oiticica (1937-1980), em 2007, e a de Cildo Meireles, em 2008, ambas na Tate Modern --, esta vem para o Brasil.

“Pape foi uma artista múltipla. Seus trabalhos de grande qualidade se distribuíram nos mais variados meios e linguagens. Tudo com a sua inconfundível marca pessoal”, diz o diretor do Paço Imperial, Lauro Cavalcanti, que assina texto para o catálogo da exposição em Madri. “Penso que a obra dela ruma para uma visibilidade e reconhecimento internacionais semelhante àqueles obtidos por Oiticica e Lygia Clark nas décadas passadas”, afirma. Clark (1920-1988) será a protagonista de outra mostra importante para a arte brasileira, que acontecerá no MoMA, em Nova York, em 2014.

O crítico de arte e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Paulo Venancio Filho, também presente com texto no catálogo de “Espaços Imantados”, acredita que os olhares do exterior sobre a arte brasileira estão mais diversificados. “Anteriormente, a atenção se concentrava quase que exclusivamente no Hélio [Oiticica] e na Lygia Clark. Hoje, o processo avançou com o reconhecimento de Mira Schendel, de Lygia Pape e, deve, espero, continuar com um Willys de Castro, um Amilcar [de Castro], um Iberê Camargo e outros.”

Exibição

  • Cortesia Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía/Projeto Lygia Pape

    "Tteia", instalação de Lygia Pape que está no museu Reina Sofia, em Madri

A maioria das peças presentes em “Espaços Imantados” pertence ao Projeto Lygia Pape, associação que detém boa parte da obra da artista e que gerencia o espólio. Na mostra do Reina Sofía, a exibição é impecável, notando-se que vários trabalhos foram restaurados. “Roda dos Prazeres”, obra formada por vasilhas de porcelana com variados líquidos e conta-gotas, recepciona o público -- na maior parte das vezes, tímido, não interagindo com a peça. “Caixa de Formigas” e, principalmente, “Caixa de Baratas”, chamam a atenção dos observadores.

“É uma crítica à arte trancada e morta dentro dos museus. Não queria um resultado meramente discursivo; buscava criar uma situação de asco, de nojo mesmo. Nada melhor que baratas para isso, não?”, disse a artista em entrevista a Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla, numa publicação do Centro de Arte Hélio Oiticica, datada de 1997. Pape enclausurou 28 baratas numa caixa de metacrilato, dispostas como se formassem uma tradicional coleção de borboletas, item presente em diversos acervos de museus.

A exposição continua pelos espaços da instituição espanhola oscilando entre registros em vídeo e a apresentação de grandes peças/instalações. “Balé Neoconcreto nº 1”, por exemplo, tem suas peças de madeira dispostas em uma sala escura, acompanhadas de filmagem de sua reencenação em Serralves, Porto, no ano de 2000. Talvez a exibição mais impactante seja a de “Tteia”, reeditada depois do êxito em Veneza em uma sala específica, na qual as linhas delicadamente esticadas sobre a superfície de 21 retângulos embaralham a visão do espectador.

A fase construtiva de Pape não é esquecida. Séries como “Tecelar”, com gravuras realizadas na década de 1950, e telas originárias da fase da artista quando estava no grupo Frente, de tom bastante racional, são cuidadosamente exibidas.

No entanto, os diversos livros criados por Pape surgem como outro destaque da mostra. “Nenhum outro artista foi tão importante nesse momento histórico de recriação do livro [1959] como Lygia Pape”, escreve Venancio Filho em texto do catálogo. O “Livro da Criação”, o “Livro da Arquitetura” e, em especial, o “Livro do Tempo”, que preenche uma parede de grandes dimensões com suas 365 partes coloridas de madeira, constituem um dos pontos altos de “Espaços Imantados”. “O trabalho de Lygia tem uma dimensão internacional que está e continuará sendo reconhecida, surpreendendo ainda aqueles que não o conhecem”, diz Venancio Filho.