Héctor Abad fala sobre samba, poesia e culpa que vem com o esquecimento na Flip
Um dos escritores mais simpáticos a passar pela Flip (e também um dos melhores), Héctor Abad, autor de “A Ausência que Seremos” (Companhia das Letras, tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina) e vários romances, novelas e livros de ensaios, está de volta à poesia depois de 38 anos. No momento ele prepara uma antologia, a ser lançada em breve, em espanhol.
De certa forma, esse retorno à escrita lírica, que havia abandonado depois que seu melhor amigo, também poeta, matou-se aos 17 anos -- o que fez com que Abad repudiasse “o excesso de sensibilidade que vem com a poesia” --, tem ligação com seu primeiro livro traduzido no Brasil.
Pois “A Ausência que Seremos” trata também de uma morte traumática -- a de seu pai, assassinado por paramilitares em Medellín, onde viviam. “Nunca pude falar sobre a morte do meu pai até esse livro. Achava que seria vulgar e grotesco falar sobre algo tão importante.” No entanto, chegou o momento “em que comecei a envelhecer, e o esquecimento passou a pesar-me como uma culpa. Sentia como uma injustiça não contar a história desse homem que eu amava e admirava tanto.”
Héctor Abad pai emerge do livro como uma figura romântica, quase quixotesca, extremamente corajosa, que desafiava as autoridades em defesa dos pobres e oprimidos. Médico, preferia investir seu tempo em questões de saúde pública, como o saneamento básico, o que enfurecia vereadores corruptos e mesmo os colegas que viam a medicina como forma de enriquecimento, com seus consultórios particulares.
Depois do assassinato a tiros, em 1987, nunca solucionado, o próprio Héctor Abad passou a ser ameaçado e teve de deixar o país com a mulher e os filhos pequenos. Tinha 28 anos. Acabou fixando-se na Itália, onde formou-se em letras pela Universidade de Turim e passou a traduzir escritores italianos para o espanhol, como Lampedusa, Dante e Umberto Saba. Saudoso da língua materna (ou, no caso, paterna), voltou a Medellín, onde vive desde 1993 numa casa nas montanhas. “A distância me deu uma maior consciência do espanhol."
Sem medo da morte
“No começo tive medo das ameaças por causa de meus filhos. Hoje não me importo de morrer”, diz, sorridente. A Companhia das Letras deve publicar dois outros livros seus nos próximos anos. Um deles é “Angosta”, premiado romance de 2004. “É uma distopia numa cidade que poderia ser Medellín ou Jerusalém ou qualquer outra no mundo. É meu trabalho mais ambicioso em termos puramente literários."
Outro é o curioso e “bem mais leve”, como diz, “Tratado de Culinária para Mujeres Tristes”, de 1996. Voltando a falar de “A Ausência que Seremos”, diz que “é bonito ver como essa história tão íntima é compreendida por pessoas de outras partes do mundo. Quando a escrevi, pensava apenas em contá-la aos meus filhos, como alguém que atira uma pedra num lago e forma vários círculos concêntricos que vão se espalhando. Meu editor, mais otimista, achava que os leitores de Medellín também gostariam".
A única ambição de Abad, de certa forma um médico frustrado -- “desisti da medicina depois que vi o primeiro cadáver e os loucos no manicômio” -- , era “recordar minuciosamente o que aconteceu, em todos os detalhes, pois são eles que realmente importam, e não os amplos painéis históricos”.
Nesse domingo fala na Flip com a amiga Laura Retrepo, também colombiana, autora de “Heróis Demais” (Companhia das Letras). Mas adianta que não se sente preso à ideia de uma literatura latino-americana. Seu autor favorito é o austríaco Joseph Roth, sobre quem escreveu um “prefácio imaginário”, a pedido do Instituto Moreira Sales. “Li dez ou 12 vezes o livro “Fuga sem fim”, de Roth, e cada vez encontro nele sentidos novos. Sinto que o livro fala a mim, não sei bem o por quê.”
Esquerdista mais crítico que seu pai, “que acreditava mais do que eu nas bondades da revolução cubana”, diz confiar no sucesso do “socialismo democrático” iniciado com o governo Lula no Brasil e em países como o Chile. Mas o que gostaria mesmo é sambar, como mostrou na festa oferecida por sua editora em Paraty, onde -- dizem -- foi o rei da pista. “Trocaria três dos meus livros pelo dom de saber sambar.”
Joe Sacco participa de mesa sobre quadrinhos na tenda jovem da Flip (9/7/2011)
Ver um autor falar na FlipZona -- a simpática casa da Flip voltada para atividades com adolescentes -- é uma experiência e tanto. Bem mais entusiasmados que os adultos, eles fazem mais perguntas do que os jornalistas nas coletivas.
Com Joe Sacco, autor da reportagem em quadrinhos “Notas Sobre Gaza" (Companhia das Letras), não foi diferente. Depois da exibição de uma entrevista em vídeo feita por dois jovens de Paraty, Sacco respondeu às perguntas dos irmãos quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Ba, convidados para mediar o encontro.
Atencioso e didático, sem perder o bom-humor, Sacco contou de sua infância em Malta e Austrália, e de como começou a desenhar aos seis anos. “Fiz minha primeira história em quadrinhos com minha irmã – que desenha bem melhor do que eu. Era para minha mãe, que estava no hospital”, disse.
E falou bastante de música, um assunto não muito comum em suas entrevistas. Fã de jazz e blues, lembrou do tempo em que viajou com uma banda americana de rock psicodélico pela Europa. “Fui roadie por seis meses e vendia as camisetas”. Depois foi a Berlim, onde passou um tempo fazendo cartazes de shows e capas de discos. Nos EUA, foi publicada uma coletânea com as HQs e artes gráficas que fez ao longo dessa experiência, chamada “But I Like it”.
Perguntado sobre a importância do passado nas suas histórias, contou que os jovens em Gaza o cobravam, dizendo-lhe para escrever sobre o que estava acontecendo agora. “Eu dizia-lhes que um dia eles também seriam esquecidos e por isso a importância de documentar o passado.”
Segundo ele, nenhum de seus livros foi traduzido para o hebraico, “mas acho que os israelenses são bem mais abertos para esse debate sobre a questão palestina do que os americanos”. Sacco lembrou também que, ao entrevistar os mais velhos em Gaza, os netos e filhos ouviam aquelas histórias de luta, violência e injustiça pela primeira vez.
Riu quando perguntaram o que ele acha da obrigatoriedade de diploma de jornalismo. E disse que aprendeu algumas coisas na faculdade, mas que o mais importante é “pensar por si mesmo” e que o incomodava “professores que só pensavam nas matérias em termos de leitores e mercado”. Ao final, foi aplaudido com gritos e assobios.
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