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Rússia resgata imagem de Trotsky, "herói e demônio" da revolução

22/12/2017 06h01

Ignacio Ortega.

Moscou, 22 dez (EFE).- Muitas pessoas na Rússia ainda sentem um frio na espinha quando falam de Leon Trotsky, mesmo cem anos depois da Revolução Bolchevique, mas uma série de televisão exibida no país parece estar quebrando este tabu.

"Para uns, (Trotsky) é um herói, para outros, um demônio. Há cem anos os russos não chegavam a um acordo e estávamos em uma guerra civil. Atualmente, continuamos sem compartilhar os mesmos valores", disse à Agência Efe Oleg Malovichko, roteirista de "Trotsky".

A série resgatou do esquecimento o autêntico artífice da vitória dos bolcheviques, tanto na hora de tomar o poder em 1917 como para ganhar a guerra contra o Exército Branco em 1921.

Apesar de os roteiristas terem se permitido fazer algumas poucas licenças históricas, a série aborda com rigor os extraordinários fatos que mudaram a história da humanidade e, em particular, a tensa relação entre a troika revolucionária: Trotsky, Lenin e Stalin.

Alguns analistas criticam a série por mostrar Trotsky de um espectro negativo, alegando que isso é o que convém ao presidente russo, Vladimir Putin, que fez o possível para silenciar o centenário da Revolução por temer sua repetição.

"Podemos entender os seus motivos, mas nunca justificá-los. Trotsky era um idealista, mas morreu decepcionado porque entendeu que, com grandes crimes, não se pode mudar o mundo", opinou o roteirista.

Lev Davidovich Bronstein "Trotsky" foi um agitador, ideólogo e grande orador, mas, principalmente, era um homem de ação, o que o transformava no perfeito complemento para Lenin, embora ambos tivessem vários desentendimentos, já que eram bastante ambiciosos.

A série mostra como Lenin o ameaçou por tentar assumir o controle do partido, mas, finalmente, aceitou coexistir com ele depois que Trotsky derrubou sozinho o governo provisório sem disparar um só tiro.

Além disso, contra tudo, Trotsky cedeu voluntariamente o protagonismo na vitória bolchevique a Lenin e assentou o caminho para que ele assumisse a chefia do Kremlin.

"Lenin tem razão. Na Rússia, o poder nas mãos de um judeu não duraria nem um mês. Deixar um ditador no comando da Rússia me libertou para realizar a revolução mundial", diz o personagem de Trotsky.

O antissemitismo perseguiu Trotsky desde o princípio, um fardo pesado do qual não pôde se livrar, por mais que ele insistisse que, em seu mundo, "todos são iguais, russos e judeus".

Seu exílio no México (1937-1940) tem um papel muito importante na série, já que a reunião em sua casa em Coyoacán com um jornalista chamado Frank Jackson, pseudônimo do espanhol Ramón Mercader, lhe serviu de desculpa para contar sua vida e enfrentar os fantasmas de seu passado.

Para começar, Trotsky revela que pegou esta alcunha emprestada do chefe da prisão czarista de Odessa na qual ele esteve detido em 1898, Nikolai Trotsky.

"As pessoas só podem ser controladas com o medo. O medo está nos alicerces de qualquer ordem", disse o chefe da prisão ao revolucionário em uma ocasião, uma lição que ele viria a aplicar durante a guerra civil, quando comandou o Exército Vermelho.

Apócrifa ou não, diz a lenda que Stalin - a quem Trotsky chamava por seu apelido, "Koba" - era um grande admirador dos textos de Trotsky, mas deixou de ser amigo dele quando este se negou a saudá-lo no fim de uma reunião do partido.

"Stalin é o monstro que Trotsky criou ao suscitar a revolução e que acabou por devorá-lo", explicou o roteirista.

Nos últimos anos de sua vida, Lenin entendeu que Stalin, a quem considerava "sem ambição", não respeitaria o legado da Revolução e conspirou com Trotsky para afastá-lo do poder.

Infelizmente, o plano chegou aos ouvidos de Stalin, o que coincidiu com a repentina piora da saúde de Lenin e com uma série de circunstâncias que levaram Trotsky a ser condenado e expulso da URSS em 1929.

"Você só está vivo porque o Bigodudo (Stalin) assim o deseja", diz o fantasma de Lenin a Trotsky, pouco antes de ser assassinado com uma piolet de escalada por Mercader.

O agente da KGB é uma figura ainda controversa na Rússia, mas na série é o contraponto de Trotsky, a quem acusa de todo tipo de ultraje - desde o terror vermelho até o fuzilamento da família imperial - e de desacreditar o legado stalinista.

No outro extremo está Frida Kalo, que manteve uma apaixonada relação amorosa com Trotsky, a quem considerava um homem sem igual.

Trotsky nunca foi reabilitado pelas autoridades soviéticas, nem sequer durante a Perestroika e, de fato, o atual líder comunista russo, Gennady Ziuganov, segue falando do "trotskismo" como uma perigosa corrente ideológica.

"Com Trotsky teria sido ainda muito pior", é o que Ziuganov gosta de repetir aos stalinistas.