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Há 4 anos, EI soava como metáfora exagerada, diz escritor Salman Rushdie

03.dez.2015 - O escritor britânico Salman Rushdie durante lançamento de seu livro "Dois Anos, Oito meses e 28 noites", em Bogotá, na Colômbia - EFE
03.dez.2015 - O escritor britânico Salman Rushdie durante lançamento de seu livro "Dois Anos, Oito meses e 28 noites", em Bogotá, na Colômbia Imagem: EFE

Gonzalo Domínguez Loeda

Da EFE, em Bogotá

04/12/2015 12h40

Com um olhar lúcido e um novo romance, próximo do realismo fantástico, gênero cuja fronteira ele acha que está se fundindo cada vez mais com a atualidade, o escritor britânico Salman Rushdie disse à Agência Efe achar que, há poucos anos, o fenômeno do grupo terrorista Estado Islâmico (EI) soava como "uma metáfora exagerada".

"Quando comecei a escrever este livro, há mais de quatro anos, o fenômeno que todos consideramos uma guerra religiosa não estava acontecendo, ninguém tinha escutado a palavra ISIS [Estado Islâmico do Iraque e da Síria, a sigla em inglês, que mais tarde mudou sua denominação para EI], pensava que estava inventando algo como uma metáfora exagerada", contou durante entrevista para o lançamento do novo livro, em Bogotá.

Em "Dois Anos, Oito meses e 28 noites", ainda inédito no Brasil, Rushdie percorre um mundo próprio do realismo fantástico que dialoga com "Mil e Uma Noites". No romance, que nasce a partir do filósofo Averroes, Rushdie descreve um panorama que pensava estar fora da realidade, "e depois o mundo real se pôs em dia com o que tinha descrito". "O livro parece mais realista porque a realidade se tornou muito estranha", acrescentou.

Rushdie conhece bem esse radicalismo. Ele foi perseguido durante anos pelos fundamentalistas islâmicos após a publicação de "Os Versos Satânicos". Em 1989 o aiatolá Khomeini lançou uma "fatwa" em que o condenava a morte. Mas seu trabalho foi muito além dessa vida de fugitivo, e sua literatura é considerada uma das mais brilhantes da Europa atual, um trabalho que se destaca por sair do lugar em que os próprios radicais o colocaram.

"Queria que o livro fosse sentido muito contemporâneo, e usei essas técnicas de fábulas antigas, mas não queria que fosse percebido como um livro folclórico, mas como o que está acontecendo no mundo hoje", disse à Efe. Com um tipo de escrita baseado na improvisação, Rushdie estabeleceu um diálogo entre Averroes, filósofo nascido em Córdoba, na Espanha, em 1126 --quem reintroduziu a "Lógica" de Aristóteles na Europa, com Al-Ghazali, representante de uma interpretação mais radical do Islã.

Rushdie confessou que no início pensou que essa conversa "seria só um prólogo", mas acabou se deixando levar por essa improvisação, por pensar que, de alguma maneira, "esta discussão ainda vive" nas diferentes interpretações religiosas. "Tive que ver a maneira de incluí-los no livro, porque estão mortos há 900 anos, mas a literatura me permitiu", ressaltou, com um sorriso esperto.

Muito envolvido com o romance, Rushdie chegou a dizer que "as leis do realismo" estão sendo borradas, Rushdie assinalou que o mais importante ao criar um mundo mágico é que fazer com que tenha coerência interna.

Para ele, "o romance realista está baseado em um acordo entre o escritor e o leitor sobre a natureza do mundo, mas atualmente estamos em um momento onde a realidade é uma discussão, o bom para um é o vilão para outro". "A realidade contemporânea está fraturada e é alvo de debates, precisa de outro tipo de aproximação", acrescentou.

Em sua tentativa, Rushdie recorre a um tipo de romance total, em que busca retratar o maior número possível de histórias, que circundam a principal, uma alegoria que mistura história, filosofia, crítica e lendas orientais como dos gênios (que serão seres fantásticos na mitologia árabe). E Rushdie não foge de temas, por mais polêmicos que sejam: a reprodução de mitos urbanos entre a opinião pública, a falta de proteção do meio ambiente e a corrupção na classe política.

Tudo isso em um universo que volta ao formato eternizado por García Márquez de uma pequena aldeia, que em seu caso reflete uma realidade global para fazer de uma grande cidade um microcosmos do mundo. "Sempre encontramos uma forma de ser tanto específica como universal, quanto mais específicos sejamos mais universal nos sentimos", acrescentou o escritor britânico de origem indiana.

Neste sentido, Rushdie disse que a cidade de Nova York, onde se passa boa parte da trama, "se sente muito particular e muito exata", por isso as pessoas podem ler na capital econômica do mundo suas próprias localidades. "Há dois tipos de escrita, uma que é o que fez Gabriel García Márquez de tomar algo muito pequeno e fazê-lo parte do mundo, ou a que eu faço, usar um mundo grande, o da grande cidade, e tentar fazer disso um microcosmos do mundo", concluiu.