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"Mendigo do bom futebol", Galeano levou paixão pela bola à literatura

Concepción M. Moreno

De Madri

13/04/2015 15h37

É comum achar  que o mundo da literatura está no lado oposto do universo esportivo, como se não houvesse grandes escritores que dedicassem suas letras ao futebol ou ao atletismo. Uma exceção a essa crença foi, sem dúvida, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, morto nesta segunda-feira (13), aos 74 anos.

Procedente de uma escola sul-americana que ofereceu ao mundo vários literatos interdisciplinares, como Gabriel García Márquez e Nelson Rodrigues, o autor nascido em Montevidéu, em 1940, abriu espaço em suas páginas para o futebol, outra de suas paixões.

O futebol "é algo tão importante que não se pode conversar apenas alguns minutos sobre ele, é preciso dedicar-lhe horas e horas", afirmou Galeano à Agência Efe em certa ocasião, em Madri, diante de um pedido de rápidas declarações sobre o esporte antes de uma leitura pública de sua obra "Bocas do Tempo" (2004). O Uruguai disputava as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2006, e sua opinião era suficientemente relevante para ser requisitada, mesmo em um evento literário.

Mas Galeano fez a jornalista saber que, além de estar contrariado por outro motivo, o fundamental para recusar essa conversa era que a relevância do futebol em sua vida era tamanha que não cabia em poucos minutos. O trecho "Todos os uruguaios nascemos gritando gol e, por isso, há tanto barulho nas maternidades, há um estrondo tremendo. Eu quis ser jogador de futebol como todas as crianças uruguaias" é o começo de seu livro "Futebol ao Sol e à Sombra" (1995).

E essa importância era compartilhada com a companheira do escritor, a argentina Helena Villagra, protagonista de tantas de suas obras, como Galeano confessou em 2009, na época da entrega da Medalha de Ouro do Círculo de Belas Artes de Madri, quando contou que as portas de sua casa se fechavam sempre que havia alguma competição importante, e cada um se dedicava a torcer por sua seleção.

Torcedor fanático do Nacional, um dos dois clubes mais importantes do futebol uruguaio, Galeano fez passar pelas páginas do "Futebol ao Sol e à Sombra" personagens da envergadura de Pelé, Garrincha e Alfredo di Stéfano.

E a um nascimento bem especial, o de Diego Armando Maradona, dedicou seu conto "O Parto", incluído em "Bocas do Tempo". O "astro" futebolístico tem sua metáfora no texto, no qual o escritor explica que a mãe do jogador, dona Tota, "encontrou uma estrela em forma de prendedor" no chão do hospital. "Essa estrela de prata e de lata, acirrada em um punho, acompanhou dona Tota no parto. O recém-nascido foi chamado Diego Armando Maradona", escreveu Galeano na conclusão do conto.

"Mendigo do bom futebol"

Como "mendigo do bom futebol", como Galeano mesmo se definiu, buscava prazer nas chuteiras de todos os campeonatos do mundo e admirava o jogo acima das cores dos clubes (exceção feitas, claro, ao Nacional e à seleção do Uruguai). Em conversa com a Efe em 2012, chegou a louvar o jogo do Barcelona de Pep Guardiola e a criticar as más práticas do então treinador do Real Madrid, José Mourinho.

Além disso, há pouco menos de um ano, o escritor declarou ao "Estado de S. Paulo" que Lionel Messi e Neymar eram "verdadeiros milagres" em um mundo cheio de interesses como o futebol profissional. "Os esportistas atuam pelo prazer de jogar, o que é importante. Rogo a Deus para que os jogadores não percam esse prazer, pois, nos últimos anos, eles vêm sendo condicionados apenas para ganhar, o que resulta em mais dinheiro. Não aprovo essa identificação da bola como fonte de lucro", comentou.

Seu conto "O Estádio", integrado em "Futebol ao Sol e à Sombra", começa assim: "Você já entrou, alguma vez, num estádio vazio? Experimente. Pare no meio do campo, e escute. Não há nada menos vazio que um estádio vazio. Não há nada menos mudo que as arquibancadas sem ninguém. (...) O Estádio Centenário, de Montevidéu, suspira de nostalgia pelas glórias do futebol uruguaio".

Embora o autor de "As Veias Abertas da América Latina" (1971), que se dizia "o pior perna de pau", possa estar feliz por reencontrar-se com seu ídolo Obdulio Varela, grande protagonista da vitória da seleção do Uruguai no Mundial de 1950 – o famoso "Maracanazo" –, certamente as arquibancadas do Centenário suspiram hoje mais tristes do que nunca.