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'Recebia cabeças direto da guilhotina': a vida inacreditável de Madame Tussaud

Embora mal pudesse ler ou escrever em francês e tenha chegado na Inglaterra sem saber falar inglês, Madame Tussaud triunfou - Getty Images/BBC
Embora mal pudesse ler ou escrever em francês e tenha chegado na Inglaterra sem saber falar inglês, Madame Tussaud triunfou Imagem: Getty Images/BBC

BBC - Adaptado do documentário da BBC "Madame Tussaud: uma lenda em cera"

01/08/2020 09h26

Em 1838, aos 80 anos, uma mulher extraordinária resolveu ditar suas memórias a uma amiga, falando sobre si sempre na terceira pessoa: "Madame Tussaud nasceu em Berna em 1761".

Suas memórias, cartas e documentos oferecem uma visão única da criação do império mundialmente famoso de museus de cera que levam seu nome.

Alguns dos detalhes do relato sobre sua vida não parecem exatamente precisos. Mesmo assim, eles são fascinantes.

Licença de autor

A verdade em si era tão moldável quanto a cera nas mãos de Tussaud. Mesmo dados objetivos como local de nascimento e seu parentesco não eram verdadeiros.

"Seu pai, que morreu antes de seu nascimento, era militar por profissão, e seu nome, Grosholtz, era prestigiado", afirmou.

Mas a história de Marie Tussaud começou na realidade em Estrasburgo, não na rica cidade de Berna. E sua família estava longe de ser ilustre.

Quando o pai dela morreu, sua mãe procurou um cunhado e pediu ajuda. Philippe Curtius era um médico e anatomista que virou modelador de cera na cidade de Berna.

Ele empregou a mãe de Marie como governanta e tornou-se muito apegado à menina, a quem ensinou sua arte.

Primeiros passos

Philippe Curtius era uma celebridade em Berna. Ele era procurado por seus conhecimentos sobre magia e anatomia, e seus modelos de cera eram disputados.

Ele aprendeu este ofício em meados do século 18, quando o acesso a cadáveres para dissecações ficou mais difícil. Assim, modelos para aprender e ensinar anatomia viraram artigo de primeira necessidade.

À medida que sua fama aumentou, Curtius ampliou seus negócios e decidiu abrir outro espaço de exibição no Boulevard Du Temple, em Paris.

Junto a imagens de criminosos, Curtius expôs bustos das celebridades da época, uma fórmula que mais tarde daria fama à sua sobrinha em todo o mundo.

Depois de descobrir que Marie levava jeito e aprendia rápido, Curtius a tornou sua aprendiz e confiou-lhe a tarefa de fazer os moldes das cabeças dos personagens principais daquele período, que "pacientemente se colocavam nas mãos da bela artista".

Realmente real?

À medida que se tornava uma fabricante de modelos de cera bem-sucedida, Marie mergulhou completamente no processo. Suas habilidades aumentaram, assim como sua reputação... pelo menos de acordo com suas memórias.

"Entre os membros da família real, que costumam fazer visitas e admirar o trabalho de Curtius e de sua sobrinha, estava Madame Elisabeth, irmã do rei."

Ela conta que a princesa pediu-lhe para ensinar a arte da modelagem com cera e diz que ela gostava tanto de estar com ela que pediu a Monsieur Curtius permissão para levá-la para morar no Palácio de Versalhes para "desfrutar de sua agradável companhia".

Mas tudo isso é altamente improvável. Marie não aparece em registros oficiais. Além disso, em uma estrutura hierárquica altamente controlada, alguém que ganhasse dinheiro com vendas em Paris com Curtius jamais teria tido acesso ao círculo íntimo real.

14 de julho de 1789: a queda da Bastilha

Depois de outros relatos de suas supostas conversas com a realeza, as memórias adquirem tom mais dramático. A vida da jovem Marie estava prestes a passar por uma reviravolta. A Revolução Francesa estava chegando.

Como Marie, Curtius era um monarquista, mas também um homem de negócios astuto. Ele sabia que iria precisar mudar seu estilo para sobreviver.

A partir da revolução, ficou muito perigoso manter bustos da família real à vista do público. O primeiro evento que Madame Tussaud conta sobre o "sangrento começo da Revolução" foi quando "o público começou a se reunir nas ruas exigindo bustos dos ídolos do povo".

Àquela altura, a exibição de figuras de cera começou a cumprir um papel semelhante ao dos noticiários de hoje. As pessoas visitavam o atelie para saber sobre os últimos acontecimentos.

Por isso eles tinham que mudar rapidamente os bustos de lugar, a fim de refletir as mudanças de comando na Revolução.

As cabeças decapitadas eram imediatamente levadas a Madame Tussaud, "cujos sentimentos podem ser mais facilmente imaginados do que descritos", segundo o relato. "Tremendo de horror, ela era forçada a fazer moldes."

Marie conta que fazia os modelos de cera dos guilhotinados nos degraus da sala de exposição.

Embora a cena pareça inverosímil, neste caso ela é real: a imagem é corroborada por relatos de outras pessoas e sabe-se que a exposição efetivamente incorporou as cabeças dos revolucionários decapitados.

Por mais desagradável que fosse produzi-los, não há dúvida de que os retratos de cera macabros das vítimas mais famosas atraíram ainda mais multidões.

Em 1794, Robespierre, o arquiteto-chefe do chamado período do terror da Revolução foi para a guilhotina. O país estava em guerra, dentro e fora de suas fronteiras.

O caos na França piorava e o tio de Marie recebeu uma ordem de atuar como tradutor no exército francês.

Depois de alguns meses, ele voltou muito doente e morreu, pouco depois, deixando Marie como única herdeira de sua casa em Versalhes e da sala de exposições no Boulevard Du Temple.

A senhora Tussaud

Marie não ficou sozinha por muito tempo. Casou-se com François Tussaud, um engenheiro que gostava de comprar ações, investir em teatros, e que estava com a artista pelo dinheiro. Como marido, François era um fardo.

Mas, com ele, Marie finalmente conseguiu deixar para trás o nome de uma família popular, passando de mademoiselle Grosholtz para a madame Tussaud.

Ela tinha 37 anos quando Marie teve seu primeiro filho, Joseph. A segunda filha morreu ao nascer e outro filho nasceu no ano seguinte: François.

Sua vida de casada era infeliz e a revolução estava arruinando seus negócios. Os turistas não vinham mais a Paris; as pessoas tinham menos dinheiro e os ricos que sobreviveram à guilhotina deixaram a França.

Esse poderia ter sido o fim da história, mas em uma manhã de outubro de 1802, um encontro com um amigo da família mudou o curso de sua vida.

"Phantasmagoria"

Paul de Philipsthal era um artista itinerante alemão que dizia que conseguia se conectar com o além. Quando se revelou que ele era um charlatão, Philipsthal deixou seu país e foi para Paris em busca de um público mais suscetível.

Ele usava a Lanterna Mágica, que era um desdobramento da câmera obscura —um ancestral dos projetores de slides que, no século 17, era uma distração que fascinava os ricos europeus.

Os shows foram chamados de "phantasmagoria" (reunião de fantasmas). O público entrava em uma sala completamente escura e era bombardeado por uma série de imagens de fantasmas e espíritos malignos.

Philipsthal estava procurando outros elementos para adicionar ao seu show e sugeriu que Marie fosse com ele para a Inglaterra.

Ela arrumou suas coisas, deixou o marido encarregado pela sala de exposições em Paris e o deixou filho caçula com a a avó. Depois, atravessou o Canal da Mancha com o filho mais velho, Joseph, que tinha 5 anos na época.

O homem de sua vida

Em 1802, ele chegou a uma Inglaterra que sentia um misto de fascinação e repulsa pelo que vinha da França. A França era o inimigo. Napoleão era a figura central dessa estranha relação de atração e repulsa. E Madame Tussaud tinha essa imagem... em cera.

Assim, Napoleão se tornou a figura central em sua exposição. Depois de romper com Philipsthal, que não foi um bom sócio, ela começou a viajar pela Inglaterra com um show que até 1808 era chamado de "Gabinete de Curiosidades de Curtius".

Quando chegava a um novo local, ela produzia pôsteres anunciando: "Especialmente para a sua cidade por tempo limitado... o Gabinete de Curiosidades de Curtius".

O "tempo limitado" não tinha data exata. Tussaud se mudavam apenas quando quando começava a menos.

Ela também sabia que a viagem em si era uma forma de propaganda, já que cada uma de suas carruagens tinha o nome do show e seu próximo destino.

E como ela queria atrair a nova classe média rica, ao contrário de outros espetáculos itinerantes, ela alugava salões amplos, bem mobiliados e decorados. Os modelos de cera eram distribuídos para que as pessoas pudessem andar entre eles e tocá-los.

Isso mudou a cara da modelagem de cera no Reino Unido, que até então era associada a entretenimento popular ou anatomia . Madame Taussaud transformou-a em uma atração informativa para a classe média aspirante.

"Todo mundo fica impressionado com minhas figuras, eles não viram nada assim. Eles me tratam aqui como uma grande dama."

As turnes pelo Reino Unido ficaram cada vez mais lucrativas e ela continuou a enviar dinheiro para o marido, que ainda estava na França, supostamente cuidando da educação de François, o filho mais novo.

O homem, no entanto, gastou tudo e, em 1812, François se viu obrigado a vender as figuras de cera no Boulevard Du Temple.

Em 1817, após a separação de seus pais, François chegou a Londres carregando uma foto familiar para confirmar sua identidade, já que não via a mãe e o irmão há 15 anos.

Ele era carpinteiro e seu posto nos negócios da mãe era produzir os braços e as pernas das figuras. As duas crianças trabalhavam sob as ordens da mãe e a exposição mudou seu nome para Madame Tussaud e filhos.

Londres, Baker Street

Em 1835, depois de três décadas percorrendo as estradas do Reino Unido, Madame Tussaud e seus filhos tinham um negócio próspero.

Marie enfim juntou dinheiro suficiente para alugar uma sala de exposições na Baker Street, em Londres.

Na época, eu não sabia que aquele se tornaria sua sede permanente. O plano passar alguns meses no centro de Londres, da moda, da área cultural e burguesa. Mas como eles continuavam ganhando dinheiro, eles foram ficando.

Combinando a sangrenta violência da Revolução Francesa com rostos famosas de assassinos, a "Câmara de Horror" atraiu multidões.

Numa época em que as execuções não eram mais públicas, isso permitia que as pessoas se aproximassem um pouco do mundo oculto do crime e da punição.

E os visitantes tinham certeza de que os modelos haviam sido tirados da cabeça de pessoas mortas.

Em 1837, uma nova atração levou Madame Tussaud e sua exposição a outro nível: a jovem rainha Victoria permitiu que ela a modelasse em cera e que a figura vestisse réplicas exatas de sua roupa de coroação.

A rainha ficou tão satisfeita com a peça que trouxe os filhos para vê-la e encorajou outros aristocratas a fazer o mesmo.

"Após 36 anos de residência, incluindo os últimos cinco em Londres, Madame Tussaud está mais na moda do que nunca. Ela escapou de massacres, foi salva da guilhotina e chegou a um retiro pacífico. A salvo, ela se despede dos seus leitores."

Assim termina sua fascinante autobiografia, um excelente retrato de como ela queria ser lembrada.

Ele morreu em 15 de abril de 1850, aos 89 anos. Seu obituário apareceu em quase todos os jornais que a qualificaram, sem exceção, como uma "instituição nacional".

Seu museu continua espetacularmente bem-sucedido entre londrinos e visitantes. Hoje, Madame Tussaud tem nove espaços na Ásia, sete na Europa, sete nos Estados Unidos e um na Oceania.