Margaret Atwood, autora de 'O Conto da Aia': 'Se os EUA tivessem uma ditadura, seria religiosa'
Margaret Atwood pega minha caneta e fica surpresa de ver como ela se move facilmente sobre a folha.
"É por causa da umidade", explica. "Em climas secos, esse tipo de caneta não escreve tão bem."
A escritora canadense de 80 anos está em Cartagena para o Hay Festival. Ainda que todos na cidade colombiana estejam sentindo o calor úmido, talvez ninguém preste atenção a detalhes tão insignificantes e, ao mesmo tempo, cotidianos.
Mas Atwood não é como outras pessoas.
Ela escreveu cerca de 60 livros traduzidos em mais de 20 idiomas, entre os quais o best-seller de 1985 O Conto da Aia, adaptado em 2017 para a televisão com uma série de mesmo nome que recebeu oito prêmios Emmy e dois Globos de Ouro.
A protagonista da história, Offred, conta em primeira pessoa sua vida em Gilead, um governo totalitário teocrático instalado nos Estados Unidos em um futuro não especificado.
Naquela sociedade com castas sociais estritas facilmente distinguíveis por suas roupas, ela é uma das mulheres que são forçadas a ter filhos para famílias de altos escalões de poder.
Os característicos vestidos vermelhos e chapéus brancos tornaram-se um símbolo de manifestações pelos direitos das mulheres, particularmente a favor do aborto.
A personagem escreve sem saber se alguém lerá sua história. Ela escreve, embora isso seja proibido.
Portanto, quando Atwood fala de tinta, suas palavras ressoam além da perspicácia da observação. Foi ela quem criou Offred e, naquele momento, as duas estavam na minha frente, dedicando o livro para mim.
No ano passado, 34 anos após O Conto da Aia, ela publicou a altamente aguardada sequência Os Testamentos.
A BBC News Mundo teve uma hora de entrevista com Atwood, feita em conjunto com o jornal espanhol ABC. O que você lerá a seguir é um trecho dessa entrevista, em sua própria voz, sem as interrupções desnecessárias das perguntas.
"Os tempos mudaram.
Nos anos 1970, houve muitas conquistas. Muitas leis foram alteradas, as mulheres ganharam mais direitos.
Nos anos 80, quando eu escrevi O Conto da Aia, houve um momento de recuo. O direito religioso fazia parte desse revés nos Estados Unidos e conseguiu derrotar a Emenda dos Direitos Iguais (que busca incluir a igualdade de gênero na Constituição).
Escrevi o livro para fazer várias perguntas, por exemplo: se os Estados Unidos tivessem um totalitarismo ou uma ditadura, de que tipo seria? Seria comunista? Seria chamada de fascista? Não, seria religiosa.
Esse seria o conceito de organização nos Estados Unidos, diferente de outros países.
A Europa teve suas guerras religiosas no século 17, portanto, não é provável que ela tenha uma guerra civil religiosa novamente. Ela teria outro tipo de guerra civil.
Nos Estados Unidos, essa religião não seria a da Igreja Católica. Eles se livrariam dos católicos. A religião seria algo como um programa fundamentalista puritano.
Quando há uma religião no governo, muitos se tornam hereges: católicos, batistas... todos que são concorrentes.
Quando os bolcheviques venceram a revolução na Rússia, de quem eles se livraram primeiro? Dos mencheviques. E em seguida dos velhos bolcheviques."
Portanto, a primeira pergunta é que tipo de ditadura seria e a próxima, como isso tomaria forma, como eles eliminariam a Constituição, que é algo que eles parecem estar fazendo agora de qualquer maneira.
Em outras palavras, estou muito interessada em como as ditaduras e os totalitarismos evoluem. Por que estou interessada nisso? Porque tenho idade suficiente para lembrar das do século 20.
Tenho idade suficiente para lembrar de (Adolf) Hitler, idade suficiente para lembrar de (Benito) Mussolini, de (Francisco) Franco, de (António de Oliveira) Salazar e todas aquelas pessoas. Eu estava viva quando eles estavam vivos.
Não é assustador?
Tivemos outros desde então, como os militares na Argentina e (o ditador) Pol Pot no Camboja.
Todos eles tiraram direitos das mulheres. Não importa como as ditaduras se autodenominam: todas elas o fazem. A mulher é algo a ser resolvido.
Então eu coloquei no livro coisas de todo o mundo, incluindo os Estados Unidos, que já haviam acontecido ou estavam acontecendo nos anos 80. Muitas ainda acontecem e ainda estamos sofrendo contratempos.
O interessante deste livro é que, em qualquer país que você vá, encontrará mulheres que pensam que é sobre o país delas.
Isso é bom porque é o que eu pretendia. Não queria que ele fosse muito específico sobre nenhum país. Não se trata apenas de escravidão nos Estados Unidos, embora haja elementos dela.
Também existem elementos de outros países, como o roubo de bebês na Argentina. Durante o governo militar, quando as mulheres tinham um bebê na prisão, elas geralmente o davam a generais ou colaboradores. Então agora tem muitas pessoas aprendendo que elas não são quem elas pensavam que eram.
Mas vamos voltar à história. Em 1991, a Guerra Fria acabou e todo mundo disse: "Problema resolvido! Vamos às compras! Não há com o que se preocupar".
Depois vieram os ataques de 11 de setembro (de 2001), que mudaram toda a situação geopolítica, e a crise financeira de 2008 mudou ainda mais.
Quando as pessoas têm medo e se sentem ameaçadas, tornam-se conservadoras e dispostas a renunciar aos direitos civis em troca de segurança. É nisso que eles acreditam.
É sempre uma mentira.
Pessoas como o presidente do Brasil (Jair Bolsonaro), que diz: "Eu sou um homem forte e vou resolver isso para você. Você tem que oprimir mulheres e grupos minoritários e tudo ficará ótimo".
Gilead não é diferente disso.
É por isso que devemos dizer repetidas vezes: isso não é verdade.
Os Republicanos, durante as últimas três eleições presidenciais, disseram coisas muito peculiares sobre mulheres, coisas baseadas em ideologia e não em biologia.
Eles fizeram declarações absurdas como que, se te estuprassem e você engravidasse, não foi estupro, porque o corpo feminino tem mecanismos para impedir gravidez em caso de estupro.
Nas eleições de 2016, essas pessoas ganharam poder e se tornaram capazes de implementar sua agenda.
Já tínhamos metade da série filmada em 2016, quando acordamos em 9 de novembro e dissemos: "Estamos diante de uma série diferente". Mas não porque mudamos alguma coisa, mas porque o quadro em torno da série mudou. A série ia parecer diferente.
Em abril de 2017, estreamos e muitas pessoas pensaram: "É isso que vai acontecer, embora talvez sem as roupas". Seria outra roupa discreta, mas não exatamente essa.
Comecei a escrever Os Testamentos depois dessas eleições porque você podia ver para onde as coisas estavam indo. Em fevereiro (de 2017), contei aos meus editores o que estava fazendo.
Essa foi a ordem dos acontecimentos.
Antes de escrever Os Testamentos, perguntaram-me o que aconteceu com Offred. "A escolha é sua!", respondia.
Agora, as pessoas me perguntam qual é a ansiedade mais disseminada. E essa pergunta é se há esperança, referindo-se à raça humana. E é claro que há esperança!
Isso não significa que é sempre justificada, mas nós temos. Caso contrário, não acordaríamos de manhã. Você deve agir com base nessa esperança.
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