Ibiza: como o rock'n'roll deu origem ao hedonismo da ilha
Prédios da Playa d'en Bossa e San Antonio estavam cobertos com tapumes, mas não o cenário parecia ser baixa temporada enquanto cruzávamos as estradas margeadas por árvores de Ibiza, em um Mustang dos anos 1960.
Caroline Lilliehook, dona do carro e da primeira empresa de aluguel de carros Mustang de Ibiza, dirigia a caminho de descobrir o rock'n'roll das colinas sonolentas da ilha. Ou melhor, desencavá-lo. "O rock'n'roll foi por onde a cena musical começou em Ibiza. Mas a maioria das pessoas se esqueceu disso", disse ela.
Ibiza tem sido uma ilha para os excluídos e inconformistas, uma diáspora de criativos que fugiram da Espanha de Francisco Franco em 1936 e de hippies em busca das vibrações magnéticas da ilha de Es Vedra nos anos 1960. Intrigada com a forma como essa história se transformou no cenário mais louco da Europa, importunei Lilliehook no almoço de tapas.
Como é que o Ibiza se tornou o lugar da badalação?, perguntei-lhe. A resposta está no rock'n'roll, explicou-me. "Mas você terá que ir ao Pikes Hotel para descobrir mais. Foi aí que tudo começou", acrescentou Lilliehook.
A história de Ibiza está repleta de contos de estrelas do rock: a cantora e compositora alemã Nina Hagen casou-se aqui em 1987 em uma celebração punk que durou dois dias.
Em 1977, havia rumores de Eric Clapton ter quase morrido em um naufrágio ao chegar aqui em seu barco com George Harrison.
Mas tudo parece sempre levar de volta a Pikes - o hotel situado nas colinas com vista para San Antonio, onde Wham! gravou o vídeo do Club Tropicana; que abrigou a infame festa de aniversário de 41 anos de Freddie Mercury; e onde Mercury se hospedou antes de sua icônica performance no Ku Club com Montserrat Caballé, a famosa cantora de ópera espanhola. Contam que o ensaio da performance foi realizado lá, mas, como boa parte da década, os detalhes são confusos.
Playboy Pike
O hotel tem esse nome por causa de Tony Pike, um ex-marinheiro e playboy internacional inglês que emigrou para a Austrália e que chegou a Ibiza em 1978 após dar uma festa de despedida no sul da França que durou 48 horas. Por recomendação de um amigo, Pike embarcou em uma balsa espanhola, desceu em Ibiza - e decidiu ficar. Uma fazenda de 500 anos perto de San Antonio logo chamou sua atenção; ela se chamava Can Pep Toniet, que significa "propriedade do pequeno Tony". Quem poderia resistir a destino tão óbvio?
Abandonado, sem água, eletricidade ou saneamento, o local que se tornou um hotel de cinco estrelas foi erguido do zero nos cinco anos seguintes por Pike, que usou uma britadeira para ilegalmente conectar sua infame piscina a um gerador de eletricidade público.
Quando os anos 1980 começaram, Ibiza estava no auge de seu primeiro fluxo de turismo de clubes noturnos. Pacha, Amnesia e Club Ku abriram, e rumores das praias desertas e colinas de Ibiza se espalharam rapidamente. A antiga capital do movimento hippie estava prestes a se transformar.
Para Pike, essa mudança ocorreu em 1983, quando Simon Napier-Bell, gerente da Wham!, decidiu gravar o novo single do grupo, "Club Tropicana", no hotel. O vídeo contou com a participação especial de Pike como bartender, enquanto George Michael flutuava na piscina e cimentava tanto Ibiza quanto o Pikes Hotel como um destino de badalação. Durante uma década, não se podia dizer "hedonismo" em Ibiza sem incluir o Pikes Hotel.
Andy McKay e Dawn Hindle, atuais proprietários do Pikes, concordam: "Não há um hotel de rock'n'roll no mundo que não diga que Pikes concorre com eles pelo primeiro lugar".
Volta do rock
A dupla administra o hotel há oito anos desde que o lendário Tony Pike lhes passou o bastão. Eles chegaram à ilha em 1994 para inaugurar as famosas noites de Manumission, que definiram a cena da festa de Ibiza durante os anos 1990. "Nós conhecemos Tony naquela época", explicaram.
"Mas à medida que entrávamos no milênio, a cultura DJ e club estava muito chata e a música não mudava. Senti que estávamos empacados como indústria", disse McKay.
Então, em 2005, eles lançaram o Ibiza Rocks, uma série de shows ao vivo com artistas como Kasabian, Arctic Monkeys e The Prodigy, trazendo de volta à ilha, pela primeira vez em anos, uma onda de shows ao vivo.
"De repente, estávamos trazendo muitas bandas internacionais para a ilha e muitas delas queriam hotéis - nós não queríamos perder a atmosfera que estávamos criando colocando-os em algum hotel sem identidade.
"O legado do Pikes era o de hospedar artistas, e de repente pensamos: 'espere um minuto, se estamos trazendo todos os talentos e todas as estrelas do rock de volta, não deveríamos simplesmente alugá-lo?'".
Eles fizeram um acordo e, cinco anos depois, o compraram. Agora, o hotel faz jus à sua história, completa com uma quadra de tênis rosa flamingo e uma decoração que inclui camas nos gramados da frente. Eles até reverteram a suíte principal em uma área social, como era originalmente - embora agora seja uma pequena e vibrante casa noturna, em vez do restaurante e bar dos anos 1980.
"Queríamos que fosse o melhor hotel do mundo se você é um astro do rock", disse McKay. "A intenção foi a de devolver ao hotel a glória de antes."
Enquanto McKay e Hindle revigoram o Pikes, Diego Calvo, hoteleiro de Ibiza, tem expandido esse espírito ao resto da ilha. Com cabelos penteados para trás e uma coleção particular de carros antigos, Calvo parece ser a versão moderna de Pike.
"Desde os meus 17 anos, tenho me dedicado a duas paixões: a indústria hoteleira e o rock'n'roll", contou Calvo. "As coisas que influenciaram minha vida também influenciaram os hotéis: filmes dos anos 1980; os motéis da Rota 66; a arquitetura art déco de South Beach Miami; carros clássicos. Eu quero levar meus hotéis a um outro nível, eles não são apenas lugares para dormir, e sim espaços de socialização, lugares onde as coisas acontecem".
Ele também entende o espírito livre da ilha: seus pais se mudaram para cá durante o regime de Franco e ele cresceu na Ibiza dos anos 1970.
Em nenhum lugar isso é mais evidente do que em Dorado, um dos cinco hotéis de Ibiza pertencentes a Calvo. Um sonho em azul-esverdeado e branco no litoral aparentemente interminável de Playa d'en Bossa, ele é inteiramente temático em torno da história do rock'n'roll. Cada uma das 14 suítes do hotel é dedicada a um disco de ouro da história da música.
Quando entramos na suíte Bob Dylan, Blowin'in the Wind começou a tocar em um aparelho de vinil, e numa olhada no banheiro, notei que o chuveiro tinha a forma de microfone retrô.
"Marky Ramone, o baterista do Ramones, ficou em Dorado há dois anos, e é claro, teve que ficar na suíte de sua grande amiga Debbie Harry", lembrou Calvo.
Ibiza Rocks
Assim como McKay e Hindle começaram na indústria de festas, Calvo também vem de um contexto musical. No mesmo ano em que eles deram início ao Ibiza Rocks, Calvo lançava seu próprio negócio de eventos, o Rock Nights, com foco em festas de rock'n'roll realizadas em locais pequenos e autênticos. Os três tiraram o máximo da música ao vivo, e os três concordam que ela anda esquecida - mas está longe de ter desaparecido.
"Há uma enorme herança de música ao vivo nesta ilha, seja de Pink Floyd ou Jimi Hendrix", disse McKay. "A ideia de que ela é apenas uma ilha de dance music é um pouco ridícula. Ibiza era uma ilha de música ao vivo muito antes de ser uma ilha de dance music. Mas quando o ritmo estourou nos EUA, isso provocou uma onda enorme em todas as coisas eletrônicas. Em meados dos anos 2000, Ibiza realmente esqueceu a música ao vivo".
Acrescente-se a isso o surpreendente fato de que, tecnicamente, a música ao vivo é ilegal em algumas partes da ilha há algum tempo. A lei de Ibiza determina que controladores de ruído sejam instalados em todos os equipamentos de som, algo difícil de fazer em instrumentos ao vivo. No início de 2018, uma nova legislação acrescentou que a música não deveria exceder os 65 decibéis, o que colocou os DJs de Ibiza também em campo minado.
"Os músicos só podiam tocar através do sistema de som local, resultando em níveis ridiculamente baixos de decibéis", disse Calvo. No entanto, após manifestações ao longo de 2018, a lei foi alterada para permitir a música ao vivo entre 13h e 23h. Parece que o rock'n'roll de Ibiza está pronto para ressurgir.
"Ibiza tem sido invadida ao longo dos anos por esta cultura global VIP e tornou-se um lugar muito grande de uma forma onipresente que não é específica de Ibiza. Agora estamos começando a ver que há um declínio neste movimento, e diferentes tipos de experiências de Ibiza estão explodindo. O espírito do rock'n'roll de Ibiza está ficando mais forte novamente", McKay se entusiasmou.
E de fato, os clubes não têm o prestígio que já tiveram, tanto em Ibiza quanto na Europa. Basta perguntar a Thomas Cook, responsável pelo Club 18-30 - agência turística focada em jovens festeiros - que aposentou sua famosa marca no ano passado. Mas isso não significa que a festa de Ibiza acabou. Ao contrário, diante de uma reação crescente contra o turismo de massa, a festa em Ibiza parece estar se reinventando, direcionando sua energia para canais como os antigos.
Para McKay e Hindle, isso chega perto de ser um religião: "Nós não seguimos o dinheiro, seguimos a energia. Geralmente há um momento nesse tipo de trabalho em que o dinheiro continua subindo, mas a energia desaparece. Quando a energia some, nós trocamos. Muitas pessoas nesta ilha esquecem que a energia é o que importa. De toda forma, estamos perseguindo o rock'n'roll. A atitude do rock'n'roll é o que mantém a cena viva".
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