A estranha doença de quem é abalado por obras de arte
O escritor francês Stendhal, pseudônimo de Henri-Marie Beyle (1783-1842), ficou tão impressionado com a Basílica de Santa Cruz, em Florença, que teve alucinações e passou mal.
Ele foi especialmente tocado pelos afrescos do renascentista Giotto di Bondone (1276-1337). E também se comoveu com os túmulos de importantes vultos históricos, cujos restos mortais estão no interior da igreja - Michelangelo Buonarrotti (1475-1564), Niccolò Machiavelli (1469-1527), Galileu Galilei (1564-1642), entre outros.
Em seu livro Roma, Nápoles e Florença, publicado em 1817, ele escreveu: "Eu caí numa espécie de êxtase ao pensar na ideia de estar em Florença, próximo aos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime… Cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais… Tudo falava tão vividamente à minha alma… Ah, se eu tão-somente pudesse esquecer. Eu senti palpitações no coração, o que em Berlim chamam de 'nervos'. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair."
Nascia aí a Síndrome de Stendhal. Ou hiperculturemia. Ou Síndrome de Florença. Trata-se de uma doença psicossomática, uma reação que pode ocorrer com alguns indivíduos quando são expostos a muitas obras de arte de valor fora do comum. Entre os sintomas relatados estão vertigens, taquicardia, desmaio, confusão mental e alucinações.
Desde Stendhal, centenas de visitantes declaram sentir os mesmos sintomas. Mas a síndrome só foi descrita cientificamente em 1979, pela psiquiatra e psicanalista italiana Graziella Magherini, autora do livro La sindrome di Stendhal. Il malessere del viaggiatore di fronte alla grandezza dell'arte (A Síndrome de Stendhal: o Mal-Estar do Viajante Diante da Grandeza da Arte, em tradução livre).
Conforme ela explica no livro, a importância do episódio vivido por Stendhal "deve-se ao fato de que a história dessas emoções assume um valor simbólico, extensível a uma analogia gigante em diferentes contextos e tempos em que, no entanto, o elemento é a presença do sujeito em um lugar de arte".
Magherini ressalta que isso acontece porque a viagem pela arte "pode ser considerada uma jornada da alma", algo "capaz de despertar um enredo de emoções e sentimentos que, obviamente, nem todos conseguem administrar".
Estatisticamente, segundo a pesquisadora, 87% dos casos foram vivenciados por pessoas que viajavam sozinhas. E os sintomas sempre foram vistos em lugares especialmente carregados de arte e história - segundo ela, são locais onde "o indivíduo enfrenta um importante teste para sua própria identidade".
De acordo com a teoria, a vontade de viajar está entre os desejos mais primitivos do ser humano. Contudo, a vulnerabilidade vem justamente durante a jornada, já que a identidade de cada viajante acaba o tempo todo oscilando entre perda e reconstrução. Viajar, para Magherini, é viver superando a própria fonte de enriquecimento cultural, ao mesmo tempo em que se encara o preço de uma desorganização momentânea do campo mental.
Explicações
Especialista em cinesiologia psicológica, psicodrama e psicologia transpessoal, a psicóloga e psicoterapeuta Vanessa Ferreira Franco acredita que a síndrome é a consequência da mescla de dois fatores em pessoas sensíveis: o universo artístico e o estrangeirismo.
"É inevitável que em um lugar onde há uma grande invocação da arte e da arte sacra que simpatizantes 'peregrinos da arte' estejam sujeitos a reagir de forma expressiva a obras de tamanha magnitude e beleza. Por conta disso, é natural que o corpo se expresse na forma de sintomas como uma maneira de manifestar sua resposta em correspondência a tal invocação", analisa ela.
"A síndrome acomete especialmente simpatizantes sensíveis à arte e turistas. Acredito que a soma dos fatores 'universo artístico' e o 'estrangeirismo", se assim posso colocar, por si só já abre um campo favorável e disponível para que manifestações psicossomáticas dessa ordem possam ocorrer.
O simples fato de você se colocar em um território desconhecido ao seu, e de já possuir uma certa sensibilidade a expressão da arte, já o coloca em um espaço psíquico predisposto a tais reações e respostas no corpo dessa natureza. E isso, do meu ponto de vista, já é digno de consideração e legitimidade."
Em artigo sobre o assunto, o professor de medicina Hayk Arakelyan, pesquisador da Universidade de Yerevan, na Armênia, ressaltou que a síndrome pode ser experimentada por qualquer pessoa "sobrecarregada por obras-primas artísticas", embora sejam mais suscetíveis aqueles que visitam Florença.
"Os sintomas são ansiedade, taquicardia, palpitações cardíacas, tontura, desorientação, perda de identidade, exaustão física, desmaios, confusão, ataques de pânico temporários, ataques de loucura que duram dois ou três dias e alucinações", escreveu ele. "A síndrome de Stendhal é uma doença psicossomática rara, que ocorre mais comumente em turistas que criaram sintomas de estresse tentando ver e fazer demais durante uma visita a uma cidade famosa por seus museus, galerias de arte e marcos históricos."
Se começar a passar mal em um contexto desses, os especialistas são unânimes: vá para o hotel e desanuvie, descanse, deixe para prosseguir a imersão cultural no outro dia - respire bem entre uma obra de arte e outra.
Apesar de a síndrome já ter ganho documentação em publicações especializadas, ela não aparece entre as doenças listadas e cadastradas pela American Psychiatric Association DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. "São convenções onde se estipula os distúrbios que são categorizáveis. Mesmo não estando listada, isso não invalida a experiência.
Cabe sempre o convite à compreensão de que isso é uma experiência anômala, mas possível", explica o psicólogo Renato Belin Castellucci, especializado em experiências de transcendência.
Razão e sensibilidade
Para a especialista, o motivo pelo qual algumas pessoas são acometidas pela síndrome - enquanto a grande maioria passa incólume - está numa predisposição à abertura e numa grande sensibilidade individual. "São muitos os relatos de pessoas que abriram canais de percepção mais elevados ao entrarem, via sensibilidade e abertura predisposta, em comunhão com obras de tamanha grandeza", diz.
O psicólogo Castellucci acredita que o contato com obras carregadas de simbologia, dado o arcabouço histórico de um lugar como Florença, favorece esse tipo de efeito. "São obras que nos remetem a um outro estado de consciência", diz. "Geralmente, os acometidos pela dita síndrome de Stendhal são pessoas com nível cultural mais alto e elevado grau de sensibilização para essa questão estética."
Em linhas gerais, ele avalia os sintomas como positivos. "É um processo positivo, de integração. O indivíduo permite-se reconhecer outra esfera do seu ser, outro ponto de vista da realidade", comenta. "Esta síndrome me parece uma coisa bonita, bem interessante."
De acordo com o psicólogo, a explicação para o fenômeno estaria num certo desconcerto individual perante à beleza. "Filosoficamente falando, o ego é o nosso senso de personalidade. Ele tem uma determinada estrutura - e isto não deixa de ser uma zona de conforto para nossas experiências, para nossas relações com o mundo", complementa.
"Ao mesmo tempo, ele nos limita de certa forma. Vejo esse fenômeno como a possibilidade algo contemplativo. O contato com a beleza, com algo que remete a muita coisa maior do que a nossa estrutura comporta, faz com que o indivíduo saia da zona da normalidade."
Para ele, os que passam por experiências fortes assim geralmente podem mesmo sentir sensações de pânico ou medo. "Mas é só uma transcendência", resume.
A síndrome de Stendhal já rendeu até filme de terror. Em 1996, o roteirista e diretor italiano Dario Argento lançou 'La Sindrome di Stendhal', a história de um serial killer que sequestra uma mulher no momento em que ela é acometida pelas sensações do fenômeno em um museu. Em Florença, é claro.
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