O filme de Hitchcock que era chocante demais para ser feito
Entre todos os seus filmes, o cineasta Alfred Hitchcock (1899 - 1980) é mais conhecido por "Psicose" (1960) e, em especial, pela cena em que - alerta de spoiler - um homem vestido com roupas de sua mãe morta esfaqueia uma mulher nua no chuveiro de um motel. Os telespectadores chocados e impressionados, na época.
Em um documentário recente sobre essa cena, Peter Bogdanovich relembra o grito prolongado que tomou o cinema quando o longa estreou em Nova York. Mas Hitchcock tinha um filme ainda mais chocante em mente, planejado alguns anos mais tarde. Seria chamado "Caleidoscópio".
Determinado a se igualar aos diretores mais inovadores da Europa, Hitchcock queria aplicar seus métodos radicais em uma de suas narrativas tipicamente sombrias.
Se ele tivesse sido bem sucedido, poderíamos estar celebrando o aniversário de 50 anos de um trabalho de mestre que testou limites e quebrou tabus. Mas não foi assim.
"Caleidoscópio" foi considerado tão transgressor que nem mesmo o homem por trás de "Psicose" pôde produzi-lo.
Após dois fracassos, um projeto "perturbador demais"
Hitchcock esperava que o filme começasse a ser feito em 1967. Ele já havia recebido um Oscar honorário, o prêmio Irving G. Thalberg, e o livro de entrevistas do cineasta francês François Truffaut (1932-1984) com ele havia sido recém publicado. Portanto, seu lugar no panteão dos grandes diretores estava garantido.
Por outro lado, seus últimos dois lançamentos, "Marnie - Confissões de Uma Ladra" (1964) e "Cortina Rasgada" (1966), haviam sido uma decepção.
"Cortina Rasgada", o 50º filme de Hitchcock, foi excepcionalmente mal recebido. "Há um quê de distração no filme", escreveu Richard Schickel na revista Life, "como se o mestre não estivesse realmente prestando atenção no que estava fazendo."
Schickel continuou sua crítica dizendo que era um filme "mecânico", obra de um diretor "cansado" que repetia "triunfos passados". Algo deveria ser feito.
Em 1964, Hitchcock havia registrado um esboço de roteiro com o Writers' Guild, o sindicato americano de roteiristas. Inspirado por dois assassinos em série ingleses que foram enforcados na década de 1940, Neville Heath e John George Haigh, a ideia era fazer uma história a partir de "A Sombra de Uma Dúvida" (1943).
Nesse filme, Joseph Cotten interpreta o chamado Assassino de Viúvas. Não vemos ele assassinando nenhuma viúva, mas Hitchcok sentiu que poderia ser mais explícito nos permissivos anos 1960. Ele não apenas poderia mostrar um serial killer seduzindo e assassinando suas vítimas, mas fazer com que ele fosse o protagonista.
O diretor pediu a Robert Bloch, autor de "Psicose", para escrever um romance baseado na sua ideia, que ele então adaptaria para o cinema.
Bloch teria achado o material "perturbador demais" em 1964. Hitchcock pediu então ao seu antigo amigo Benn Levy para escrever um roteiro em 1966, e ele não fez objeções.
Suas primeiras anotações começam com o macabro comentário de que "a história de Neville Heath é um presente dos céus". Ele afirma que uma das sequências de sedução "deveria ser a cena mais horripilante já vista nas telas" e que a perseguição pela polícia deveria ser vista "mais do ponto de vista do perseguido do que dos perseguidores".
Assassinatos, homossexualidade e nudez em cena
Mas Hitchcock foi mais longe. Ele escreveu seu próprio rascunho para o roteiro, a primeira vez que o fez desde "Agonia de Amor" (1947). Passada em Nova York, sua versão de "Caleidoscópio" reimaginou Heath como um filhinho de mamãe bonitão chamado Willie Cooper.
Seu lado homicida vem à tona com água, por isso as locações das três cenas principais do roteiro: uma cachoeira onde ele mata um funcionário da ONU, um navio de guerra enferrujado em um porto e em uma refinaria de petróleo onde sua vítima é uma detetive policial que arrisca sua vida para prendê-lo.
Anos antes de "Halloween - A Noite do Terror" (1978) e de "O Massacre da Serra Elétrica" (1974), essas cenas foram consideradas terrivelmente sangrentas. Diz o roteiro de Hitchcock: "A câmera chega no abdômen da garota, onde vemos rios de sangue".
E isso não foi tudo. Willie tem revistas de musculação espalhadas por seu quarto, como sugestão de que era gay, e ele é pego por sua mãe masturbando-se.
Havia também nudez: cerca de uma hora de testes de filmagem foi feita em Nova York e boa parte dela mostrava modelos seminuas. Até Truffault ficou preocupado. "Parece claramente haver uma insistência em sexo e nudez", disse ele em uma carta a Hitchcock após ler o roteiro.
Mas ele estava disposto a dar o benefício da dúvida ao mestre. "Eu sei que você filmou essas cenas com uma grande carga dramática e que você nunca gasta muito tempo com detalhes desnecessários".
Mas "Caleidoscópio" não estava destinado a ser uma produção típica de Hitchcock. O cineasta queria fazer filmar com um elenco desconhecido, câmeras na mão, luz natural e filmagem local - qualquer coisa para provar que não estava "cansado" ou "distraído".
Ele contratou dois escritores, Hugh Wheeler e Howard Fast, para finalizar o roteiro, sendo que o último lembraria de seu revitalizado propósito na biografia de Patrick McGilligan chamada "Alfred Hitchcock: A Life in Darkness and Light" (2003, "Alfred Hitchcock: Uma Vida Na Escuridão e na Luz").
"Meu Deus, Howard", disse Hitchcock a Fast. "Eu acabei de ver a "Blow-Up - Depois Daquele Beijo" de Antonioni. Esses diretores italianos estão um século na minha frente em termos de técnica. O que eu fiz esse tempo todo?"
O filme mais Hitchcock de Hitchcock
No entanto, os executivos da Universal não compartilhavam desse entusiasmo. Hitchcock foi a uma reunião armado com fotos, filmagens e um roteiro detalhado que incluía 450 posições específicas de câmera.
Ele estava "mais avançado no desenvolvimento de seu projeto do que qualquer outra produção", escreve Dan Auiler em seu livro "Hitchcock Lost" (2013, "Hitchcock Perdido"). Mas foi tudo em vão. "Eles rejeitaram o roteiro em um segundo e disseram a Hitchcock que não permitiriam que ele filmasse", diz Fast.
Raymond Foery, autor de Alfred Hitchcock's Frenzy: The Last Masterpiece (2012, "O Frenesi de Alfred Hitchcock: a Última Obra-Prima"), bota a culpa em Lew Wasserman, dono do estúdio.
"Wasserman conhecia Hitchcock desde o fim dos anos 1940 e havia sido seu agente", diz Foery. "Mas ele queria que a Universal deixasse para trás sua antiga reputação como criadora de filmes de terror de mau gosto. Esse projeto parecia ser de muito mau gosto para ele e não era o que esperava que Hitchcock fizesse".
Qualquer que fosse a razão, Hitchcock ficou arrasado. "Eles fizeram pouco caso de sua tentativa de fazer exatamente o que eles o pressionavam a fazer", diz Fast, "tentar algo diferente, acompanhar os novos tempos".
Alguns desses conceitos acabaram indo parar em "Frenesi" (1972), mais uma vez sobre um assassino em série, com um elenco sem estrelas, alguma nudez e uma cena horripilante de estupro seguida de assassinato.
O filme, que se passa em Londres, foi comparado ao que Hitchcock havia imaginado para "Caleidoscópio". Mas o cinema americano já havia adotado as inovações europeias em meados de 1970, então ele perdeu sua chance de mostrar a Hollywood quão avant-garde ele poderia ser.
"Se o filme de 1967 ["Caleidoscópio"] tivesse sido produzido", escreve Aulier, "sua brutalidade e estilo cinematográfico estariam muito à frente dos filmes desta época que romperam com a violência estilizada do estúdio: 'Bonnie e Clyde' (1967) e até mesmo 'Sem Destino' (1969)".
John William Law, que fala sobre Caleidoscópio em seu novo livro, "The Lost Hitchcocks" (2018, "Os Hitchcocks Perdidos"), acredita que Wasserman não estava apenas preocupado com os efeitos do filme sobre a reputação da Universal, mas com a própria indústria que cresceu em torno de Hitchcock.
"Você precisa entender que ele era uma marca", diz Law, "com direitos televisivos, um catálogo de filmes valioso, livros, revistas e uma persona conhecida no mundo inteiro."
Talvez seja verdade, mas se Wasserman e outros executivos da Universal queriam proteger a marca Hitchcock, eles claramente não a entenderam.
Eles o viam, aparentemente, como uma versão de autoparódia do apresentador da série Alfred Hitchcock Presents TV, com suas antologias literárias.
Porém, ao longo de uma carreira de cinco décadas, ele sempre catalogou os impulsos mais misóginos e violentos da humanidade e brincou com novas e ousadas estratégias de cinema.
Se ele houvesse recebido permissão para fazer Caleidoscópio, teria sido o filme mais Hitchcock de Hitchcock.
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