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'Éramos inocentes sobre os crimes': A vida de um seguidor de Osho no polêmico rancho de Wild Wild Country

Mukto viveu na comunidade do Osho - BBC
Mukto viveu na comunidade do Osho Imagem: BBC

Camilla Costa

Da BBC

26/05/2018 09h17

A série documental Wild Wild Country, do Netflix, chocou espectadores de uma geração que não conhecia a história do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh - o Osho - e de sua ida aos Estados Unidos nos anos 1980, mas surpreendeu também alguns dos que estavam lá quando tudo aconteceu.

"Eu tinha ouvido falar dos crimes expostos no documentário e estava no rancho quando o FBI entrou para investigar. Mas nós não ficávamos sabendo da maioria das coisas", disse à BBC Brasil o alemão Mukto, de 65 anos, que chegou a morar na comunidade americana e hoje vive em Fortaleza, no Ceará.

"Havia muito 'disse me disse' dentro da comunidade na época. Para muitos de nós, foi um choque."

O choque ao qual Mukto se refere foi a descoberta de que as autoridades americanas atribuíam aos líderes do grupo, principalmente ao guru e a sua secretária Ma Anand Sheela, atividades como a organização de casamentos forjados para burlar as leis de imigração, um ataque bioterrorista na população local e até tentativas de assassinato.

Tudo isso depois que o guru e seus seguidores mais próximos saíram da Índia para erguer a cidade de Rajneeshpuram dentro de um rancho no Estado americano de Oregon, provocando a desconfiança e a ira dos moradores locais.

"Havia agressividade à nossa volta, e os líderes da comunidade entraram em um jogo de poder. Mas a maioria das pessoas ali dentro era inocente e estava tentando ser verdadeira com os outros", afirmou.

Apesar do escândalo na época e da prisão e deportação de Bhagwan Rajneesh, sua doutrina continuou famosa em todo o mundo, inclusive no Brasil. Hoje, pelo menos 30 centros de meditação em todo o país são ligados oficialmente à fundação do guru, que morreu em 1990, aos 58 anos, na Índia.

Popularidade e reação

A série se tornou uma das mais populares do Netflix em todo o mundo desde que foi lançada, em abril, e gerou uma resposta raivosa da Osho International.

"A série documental não explora os aspectos-chave da questão e, consequentemente, não provê um relato da história real por trás da história", diz a fundação, em comunicado publicado em diversas línguas em seu site oficial.

"Essencialmente, tratou-se de uma conspiração do governo dos Estados Unidos, começando na Casa Branca e vindo por aí abaixo com o objetivo de frustar a visão de Osho de uma comuna baseada em viver conscientemente."

Mukto, por sua vez, diz que, apesar da popularidade do documentário, não tem sido questionado por amigos nem frequentadores do centro de meditação que ele fundou em Fortaleza, chamado de Osheanic International - apesar de não ser oficialmente parte da organização.

"Eu achei ótimo que esse documentário tenha sido feito, e achei que os autores fizeram um esforço honesto de serem imparciais - algo que não é fácil em um caso tão polêmico", disse.

"Só acho uma pena que não tenham encontrado mais espaço para falar da beleza e da profundidade dos ensinamentos dele. As pessoas que assistem ficam sem entender por que tanta gente queria estar perto daquele homem."

Sua ex-mulher e parceira no centro de meditação, uma brasileira que ele conheceu justamente na polêmica comunidade nos EUA, não quis falar à reportagem sobre suas lembranças da época. "Para ela foi muito doloroso assistir à série e lembrar de tudo o que aconteceu", afirmou.

Experiência intensa

No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, Osho havia tomado as manchetes de jornais e revistas internacionais com sua doutrina que misturava elementos das principais religiões orientais, do misticismo e da filosofia ocidental, técnicas de psicoterapia e meditação.

Em seus discursos, ele fazia piadas sobre o papa católico e sobre Mahatma Gandhi e defendia a liberdade sexual. Ele era conhecido por colecionar carros Rolls Royce, relógios caros e joias.

Em seu ashram (comunidade) na cidade de Pune, na Índia, pessoas de todo o mundo iam ouvir seus ensinamentos. Em alguns casos, mudavam-se de vez, com suas famílias.

"Eu tinha 28 anos quando entrei em contato com a filosofia dele. Fiz um workshop de meditação num fim de semana na Alemanha e fiquei interessado em aprender mais sobre mim mesmo. A partir daí, fui para Pune, passei algum tempo nas comunidades europeias e depois fui para o rancho, no Oregon", relembra.

"As pessoas estavam cansadas de viver em um ambiente burguês. Podem dizer o que quiserem sobre aquela comunidade, mas era uma experiência intensa. Era o que queríamos. Nos primeiros anos, explorávamos muito a sexualidade e aprendíamos muito sobre nós mesmos."

Em 1981, Mukto foi para Pune, mas chegou à comunidade três dias depois da misteriosa saída de Osho - que já preparava sua ida para os Estados Unidos.

Mesmo sem a presença do mestre, ele diz, os seguidores continuavam assistindo a vídeos de seus discursos diariamente e se reunindo em grupos de meditação e de exploração sexual.

"Naquele momento, os encontros eram bastante intensos e alguns tinham sexo grupal. Havia muita gritaria, éramos encorajados a nos conectarmos com a nossa raiva. Havia uma forma limitada de violência, também. Algumas pessoas lutavam, uma mulher chegou a quebrar um braço", relembra.

Hoje, segundo o alemão, muita coisa mudou nos retiros espirituais e centros ligados a Osho. O ashram em Pune é hoje um resort dedicado à meditação, com uma atmosfera "mais amena".

"A primeira grande comunidade, em Pune, tinha muito a ver com sexo. A segunda, no Oregon, tinha a ver com poder. E agora, por incrível que pareça, é que a comunidade tem mais a ver com meditação. As pessoas querem aprender realmente a meditar."

Comunidades sustentáveis

Depois do período na Índia, Mukto foi para uma das muitas comunidades de sannyasins, como eram chamados os seguidores de Osho, que estavam sendo formadas na Europa, na esteira da comunidade erguida em Oregon, nos EUA.

"Todas elas tinham que ser autossustentáveis, e muitas tinham sucesso financeiro. Em Pune, você tinha que pagar uma entrada barata e pagar pelos grupos de terapia, mas a participação nos grupos de meditação era gratuita. Em Colônia (na Alemanha), onde eu morei, éramos 400 pessoas e administrávamos duas discotecas, uma empresa de construção e um restaurante", contou.

"Eu cheguei a ser diretor da empresa de construção e depois me tornei DJ. Mas fiz todo tipo de coisas. Às vezes eu estava passando roupas, outras vezes estava limpando quartos."

Nesse período, o alemão teve seu primeiro contato com uma das figuras mais controversas da história do guru, seu braço direito, Ma Anand Sheela, a mulher a quem ele atribuiria os principais crimes cometidos no Oregon.

Sheela seria acusada de instalar escutas ilegais em diversas casas da comunidade americana, de pôr fogo em um escritório da administração local, de orquestrar um ataque que contaminou cerca de 750 pessoas da cidade vizinha com bactérias Salmonella e de planejar tentativas de assassinato de um promotor público e do médico de Bhagwan Shree Rajneesh.

Quando Mukto a conheceu, no entanto, ela era a pessoa mais poderosa da organização.

"Ela foi até a Europa para organizar as comunidades. Pela primeira vez, eu comecei a questionar minha estadia ali. Ela diminuiu nosso tempo livre e os gastos com alimentação. Tivemos um sentimento negativo em relação a ela desde o começo", disse.

"Nos EUA eu também notei que muitas pessoas não gostavam dela e do grupo que a cercava. Esse sentimento foi aumentando cada vez mais. Nós ficávamos porque queríamos estar perto de Osho."

Na comunidade americana, que chegou a ser um município e tinha até mesmo aeroporto próprio, moradores não precisavam pagar pela estadia ou pela alimentação, mas chegavam a trabalhar cerca de 12 horas por dia em negócios que iam desde a agricultura até a administração de restaurantes. Eles recebiam um voucher de cerca de US$ 200 por mês para gastos pessoais.

Visitantes, por outro lado, pagavam por programas de meditação no local e pela estadia em um hotel. "Sei que não era barato, mas também não era excepcionalmente caro. Não fazíamos ideia de onde vinha todo o dinheiro da organização."

A Osho International recebia doações vultuosas de admiradores e seguidores do guru em todo o mundo e acumulou um patrimônio milionário. Autoridades da Índia e dos EUA chegaram a acusar as comunidades de sonegação de impostos - as acusações, no entanto, não foram formalizadas.

Por amor a Osho

O período em que Mukto chegou a Rajneeshpuram foi também um dos mais controversos na comunidade.

Bhagwan  Rajneesh, o Osho, em cena da série "Wild Wild Country" - Divulgação / Netflix - Divulgação / Netflix
Imagem: Divulgação / Netflix

Para conseguir uma maioria de eleitores e o direito de colocar representantes no conselho do condado de Waco, Ma Anand Sheela decidiu levar a Rajneeshpuram centenas de pessoas sem-teto de diversas cidades americanas.

O projeto gerou polêmica, e os novos cidadãos locais foram impedidos de se registrarem como eleitores na região. Tempos depois, começaram a ser expulsos da comunidade, se fossem considerados problemáticos.

Na série do Netflix, membros do grupo mais próximo a Ma Anand Sheela e Osho admitem que chegaram a colocar um sedativo na cerveja oferecida aos sem-teto, sem que eles soubessem.

"Algumas daquelas pessoas eram usuárias de drogas, algumas provavelmente tinham distúrbios mentais. Algumas tinham tendência à violência, outras se integraram. Mas foi uma loucura levar aquelas pessoas para lá. Só que estávamos acostumados a loucuras", disse Mukto.

O conflito político e ideológico dos administradores de Rajneeshpuram com os moradores das cidades vizinhas no Oregon, que é o foco da série documental, chegou a fazer com que os seguidores de Osho criassem uma espécie de polícia interna, fortemente armada.

Ameaças entre os dois lados eram frequentes, e um atentado a bomba chegou a acontecer no hotel que recebia visitantes de Rajneeshpuram em Portland, capital do Oregon. Mas o problema era apenas parcialmente conhecido dos que viviam dentro da comunidade, segundo o alemão.

"Havia muitos cristãos fundamentalistas tentando nos converter agressivamente. Sofríamos agressão verbal, havia ameaças. Também víamos as armas, que um grupo de 30 ou 40 pessoas usava. Mas acho que eu era muito inocente, porque isso nunca foi o foco da minha atenção. Muita gente não percebia o confronto", afirmou.

O foco era, principalmente, a proximidade com o guru. Naquele período, Bhagwan Shree Rajneesh havia feito um voto de silêncio e, portanto, não fazia mais seus famosos discursos para a comunidade. Mas só a sua presença, segundo Mukto, era poderosa o suficiente para arrebatar os seguidores.

"Nós amávamos Osho porque ele nos deu algo que buscávamos na época. Ele era carismático, bem-humorado. Nós abrimos o coração para ele. O fato de que ele usava joias e tinha tantos carros era engraçado, na verdade, porque a hipocrisia americana se irritou tanto."

O momento em que Osho voltou a falar, porém, foi justamente quando avançavam as investigações do FBI, a polícia federal americana, sobre a comunidade. Quando Ma Anand Sheela e seu grupo deixaram o local, em setembro de 1985, ele acusou o grupo de ser "uma gangue de fascistas", que agia sem o seu consentimento.

"Quando começamos a ouvir sobre todas as coisas que ela fez foi chocante. Quando você está fazendo algo de maneira inocente e descobre que as pessoas no comando cometeram crimes você precisa olhar pra dentro de si e questionar. Eu deveria ter dito algo antes? Deveria ter ido embora? Era terrível sentir que isso tinha acontecido e estávamos envolvidos sem saber", afirma.

Um mês depois, em outubro de 1985, o guru fugiu da comunidade em um jatinho, e foi preso durante uma parada para abastecer a aeronave. Mukto saiu de Rajneeshpuram um dia depois. "Eu cheguei a ver o avião dele saindo, sem saber que era ele. Mas eu já tinha decidido ir embora. Eu queria voltar a ter minha vida pessoal."

Depois de uma temporada na Alemanha com sua mulher brasileira, Mukto veio para o Brasil, onde fundou a Osheanic International.

"Não somos um centro oficial de Osho justamente porque, depois de tudo o que acontecei no rancho, eu hesitei em ser parte de uma organização. Mas ainda sinto amor por ele e sou grato por tudo o que ele me ensinou", afirmou.

"Se meus clientes perguntarem, direi que eles devem assistir à série não só como entretenimento, mas para se perguntar quais são suas fragilidades. Aquilo é uma lição, um microcosmos. O mundo está cheio de disputas de poder, mentiras e ganância. Acontece em todo o lugar."