É preciso questionar as regras que me fizeram ser reconhecida apenas aos 71 anos, diz escritora
A escritora Conceição Evaristo mal se lembra de ter referências masculinas ao seu redor em seus anos de formação, crescendo cercada de mulheres negras que trabalhavam como cozinheiras, lavadeiras e empregadas, profissões tão humildes como a casa pobre em que vivia com a mãe e os nove irmãos e irmãs na favela do Pendura Saia, em Belo Horizonte.
Foi com essas mulheres, que completaram a alfabetização junto com a nova geração de filhos e sobrinhos que chegava, que ela teve sua formação - e aprendeu a lição de fortaleza.
Não a fortaleza folclórica que por vezes se atribui a "um povo negro que não sente dor, que está sempre a cantar, que tem uma alegria já por herança", critica, e sim a fortaleza da resiliência "que nos agrega" e "que nos salva".
A escritora mineira, que hoje vive em Macaé (RJ), está prestes e embarcar para Paris, onde vai lançar a edição francesa do livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres e participar de mesas literárias no Salão do Livro de Paris.
Em conversa com a BBC Brasil, Conceição questiona as dinâmicas que tornam a ascensão social e profissional tão difícil para mulheres e para negros no Brasil.
Leia os principais trechos da entrevista:
Depois de 130 anos da abolição da escravatura, como a mulher negra é vista hoje no Brasil?
Conceição Evaristo - Acho que são 130 anos de uma abolição inconclusa. Inconclusa porque nós - a população pobre em geral, e mais ainda as mulheres negras - ainda não conquistamos uma cidadania plena no que diz respeito a habitação, emprego, condições de vida. A sociedade brasileira ainda tem essa dívida histórica para com a população negra, e mais ainda para com as mulheres negras.
As mulheres já enfrentam interdições por questões de gênero. No caso das negras, as interdições estão fundamentadas na questão de gênero e na questão de raça. Para as mulheres negras, a conquista de determinados direitos e de determinados espaços é muito mais difícil.
A senhora levou 20 anos para publicar sua primeira obra. Por que demorou tanto, quais foram os obstáculos?
A primeira obra que eu escrevi, Becos da Memória, ficou guardada durante 20 anos. Eu mandei para várias editoras. O texto literário, no caso da autoria negra, carrega a nossa subjetividade na própria narrativa. A temática negra, principalmente quando trabalha com identidade negra, não é muito bem aceita.
Quando a temática negra trata do folclore, ou não é tão reivindicativa, aí interessa. Mas quando questiona as próprias relações raciais no Brasil, é quase um tema interdito. Principalmente se isso é colocado pela própria autoria negra.
Até então, os brancos podiam dizer a nosso respeito. Mas quando a gente se apropria do nosso discurso, da nossa história, isso é motivo de interdição.
A senhora usa a expressão "escrevivências" para falar na sua escrita, feita a partir de suas vivências como mulher, negra, de origem pobre. Acha que está aí a força de sua obra?
Não é que o homem não possa escrever sobre a mulher. Pode. Não é que o branco não possa escrever sobre o negro. Pode.
Mas quando esse discurso falado ou escrito carrega a nossa subjetividade, justamente porque ele nasce num lugar social, num lugar de gênero, num lugar racial diferente, ele traz determinadas peculiaridades que aquele que escreve de fora, por mais que seja competente do ponto de vista intelectual ou emocional, não vai trazer. Ele não traz uma carga de quem escreve de dentro.
Aqui não tem nenhum juízo de valor, de querer dizer qual texto é mais bonito. Não é isso não. Mas trata-se de apontar esse local diferente onde esse discurso nasce e é desenvolvido.
Mas a senhora fala na importância de escrever com uma voz feminina, afro-brasileira, nascida de dentro. Ainda há pouco espaço para essa voz no Brasil, diante das perspectivas de uma elite que descende da colonização europeia?
Há uma voz hegemônica que quer ser paradigma de tudo. Mas isso não significa que o povo não criou, ou não cria, as suas vozes, as suas utopias. Essas vozes, essas utopias, essas formas de reação, essas táticas, elas sempre existiram. Se não existissem, a herança africana que marca a nacionalidade brasileira não existiria, já teria sucumbido.
Na música, na poesia, na literatura, nas religiões afro-brasileiras, em sindicatos, em associações de moradores, essas vozes sempre se pronunciaram.
Mas por mais que uma voz hegemônica queira comandar, a água escapole entre os dedos. Você não segura. Não retém a força da água. Então o povo também encontra maneiras de se afirmar, de falar, de dizer.
A senhora fala muitos sobre como cresceu cercada de mulheres em uma casa muito humilde. Como isso a marcou como mulher e escritora?
Foram essas mulheres que me formaram. A presença de homens na família foi mais rara. Embora eu tenha aprendido minhas primeiras noções de negritude com um tio, irmão da minha mãe.
Aprendi a lição de fortaleza com essas mulheres, que não tinham formação escolar completa e aprofundaram o processo de alfabetização na medida em que se tornaram responsáveis por criar uma geração de filhos e sobrinhos.
Não falo da "fortaleza" incutida no imaginário que se tem de um povo negro que não sente dor, que está sempre a cantar, que tem uma alegria já por herança... Esse imaginário não nos reconhece como seres humanos, com alegrias, tristezas, solidão. Esse imaginário retira nossa vulnerabilidade humana. Essa ideia de fortaleza a gente não reconhece.
A gente reconhece a fortaleza que criamos na resiliência, que nos agrega, que nos salva. Sem essa fortaleza, sem a criação de táticas de sobrevivência, a nossa ancestralidade morreria nos próprios porões dos navios (negreiros).
O ano passado foi consagrador, com sua participação da Flip (a Festa Literária Internacional de Paraty) e as exposições que o Itaú Cultural promoveu sobre a sua obra, em São Paulo e no Complexo da Maré, no Rio. Como foi ver a sua obra levada para dentro da favela?
Teve uma importância tremenda. Eu saí de um polo ao outro. Da avenida Paulista (onde fica a sede do Itaú Cultural em São Paulo), com matéria no jornal dizendo que eu estava no coração financeiro do Brasil, para a Maré.
Foi muito simbólico, porque é como se me devolvessem ao lugar que é meu. Ter a oportunidade de estar com crianças e mulheres da periferia, mulheres pobres, que é uma experiência minha... E poder despertar sua curiosidade, seu desejo, mostrar que determinadas competências não são só das classes privilegiadas, que nós temos determinadas competências como qualquer ser humano pode ter.
Ano passado realmente foi muito fértil para mim. Mas faço questão de afirmar, sem pestanejar: o que me fez não é a mídia. Meu primeiro lugar de recepção foi o movimento social negro. Foi a militância de homens e mulheres que me levou para as escolas, para os saraus, para a pesquisa acadêmica.
A senhora acha que o momento atual traz uma abertura maior para a produção cultural de mulheres e artistas negros?
É o que eu desejo. Em todas as áreas, os poucos negros que conseguem uma ascensão social são vistos como histórias de exceção. Mas as histórias de exceção devem ser lidas para se pensar a regra.
Que regras são essas da sociedade brasileira para vermos uma mulher virar um expoente no campo da literatura só aos 71 anos?
Enquanto você vê outras expoentes na literatura que às vezes são meninas com idade para serem minha neta, mas como vêm de um grupo social diferenciado do meu, são mais jovens, são brancas, têm sua competência logo revelada?
Por que a minha competência está sendo tão tardiamente reconhecida? (...) É preciso questionar essas regras e dinâmicas sociais, culturais e econômicas que tornam tudo muito mais difícil para as pessoas negras.
Se a minha história desperta curiosidade de leitores, do público, da critica literária, da mídia, tenho insistido também para que busquem outras autoras negras que estão produzindo. Podemos citar várias, como a Lívia Natália, a Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, a Geni Guimarães e muitas outras.
Quero que essa visibilidade que estou tendo tenha o efeito positivo de (fazer as pessoas) procurar essa autoria negra, de mulheres e de homens.
O movimento negro combate o discurso da meritocracia. A senhora conseguiu estudar a duras penas, tendo que trabalhar como babá, faxineira, vendedora de revistas quando jovem. O quão difícil foi?
O discurso da meritocracia e os exemplos de pessoas negras que acabam se constituindo em uma exceção são perigosos. Porque cria-se esse imaginário de que, se a pessoa estudar, trabalhar, se esforçar, ela consegue. Isso é mentira.
Conheço várias pessoas que estudaram, trabalharam, lutaram e não conseguiram. Ficaram pelo caminho. Esse discurso passa a impressão de que as pessoas que não conseguem são preguiçosas. Não é isso. É um esforço sobre-humano.
E, sem sombra de dúvida, eu queria ter conseguido as coisas com muito mais facilidade. Volto a falar: Eu tenho 71 anos. 71 anos não são 71 dias. É claro que estou feliz com o reconhecimento, mas essas conquistas se dão depois de muito tempo de luta. Podia ter sido um pouquinho mais fácil.
Como vê o momento atual do feminismo, com o movimento de denúncias gerados por campanhas como #MeuPrimeiroAssédio e #MeToo? Acha que o atual Dia da Mulher vem em meio a mudanças positivas?
Teoricamente, sim. Mas eu não sei até que ponto as verdades que estão sendo colocadas são incorporadas no dia a dia das pessoas. É um pouco cômodo fazer militância pelas redes sociais.
Não há dúvida de que as denúncias feitas nas redes têm o mérito de atingir um número enorme de pessoas, têm valor de militância e até de formação de consciência. Mas a luta requer uma participação efetiva nos espaços, ou nos próprios momentos em que sua presença é cobrada.
Se é hora de sair para as ruas, vamos sair para as ruas. Se é hora de dar uma aula bem dada, vamos dar essa aula bem dada. Se é hora de compactuar com o outro ao assistir a uma cena de racismo, uma cena de agressão contra o outro, vamos nos pronunciar. É fácil radicalizar nas redes sociais. O mais difícil é se comprometer na hora da prática.
O que gostaria de dizer para outras mulheres?
Eu diria para não perderem a perspectiva de luta. Para olhar para o passado e pensar nas mulheres quilombolas, nas mulheres que mesmo com a liberdade cerceada conseguiram deixar a semente de luta, de liberdade, para nós.
É preciso construir o presente sem perder essa linha histórica. Sem perder o exemplo das mulheres que palmilharam o caminho para que hoje estejamos aqui.
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