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A artista que coleciona roupas de vítimas de abusos sexuais para desconstruir discurso da culpa

Jasmeen Patheja mostra roupas que vítimas de assédio sexual doaram para coleção - Asif Saud
Jasmeen Patheja mostra roupas que vítimas de assédio sexual doaram para coleção Imagem: Asif Saud

03/01/2018 17h59

Em casos de assédio sexual, não é raro a culpa que as vítimas acabem culpadas pela situação. Muitas têm de ouvir a seguinte pergunta: "Mas que roupa você estava usando?". Por trás da questão, está a ideia de que, se estivesse com o corpo mais coberto, a mulher não teria sido molestada.

Para desconstruir esse tipo de argumento, a artista-ativista indiana Jasmeen Patheja coleciona roupas doadas por mulheres vítimas de assédio. Patheja quer desmontar a noção de qual alguma coisa no vestuário das vítimas justifica o crime.

A artista converteu um pequeno cômodo do seu apartamento, na cidade de Bangalore, em uma espécie de museu, onde há dezenas de roupas. A coleção faz parte do projeto I Never Ask For It (Eu nunca pedi por isso, em tradução livre) e deve ser transferida, em breve, para um estúdio.

São trajes que as mulheres usam habitualmente no dia a dia. Mas cada item revela uma história diferente.

Um macacão vermelho e preto pertence a uma mulher que foi vítima da violência sexual generalizada que ocorreu nas celebrações do Ano Novo, em Bangalore, no ano passado.

"Ela contou que estava participando das comemorações quando um grupo de homens se enfureceu, apalpando e atacando as mulheres", diz Patheja.

"Ela falou sobre como foi assediada e procurou abrigo", completa.

A ativista mostra uma túnica de cor creme com estampas vermelhas e pretas - uma peça de vestuário que chama a atenção pela simplicidade. Foi doada por uma mulher que foi molestada enquanto viajava de trem, na cidade de Coimbatore.

"Ela me disse que foi dissuadida de denunciar o abuso."

O vestido rosa que a artista exibe na sequência chegou até ela por meio de uma mulher de Montreal, no Canadá.

"Ela disse: 'se você não aceitar, eu vou ter que jogar fora'. Guardar a roupa a deixava até doente", afirma.

"O projeto I Never Ask For It tem o intuito de manter um espaço para nossas histórias coletivas de dor e trauma", acrescenta.

Ao percorrer as araras, ela mostra um vestido branco, um maiô, uma camisola champanhe, uma calça comprida, um uniforme escolar - peças de roupa que ela classifica como "um espelho" do fato de que todas as mulheres vivenciam abuso e violência de gênero, independentemente do que estão vestindo.

"Não tem nada a ver com a roupa que você está usando, nunca haverá desculpa para tal violência e ninguém nunca pede por isso".

A luta da ativista contra a violência sexual e de gênero começou há quase uma década e meia, logo depois que ela se mudou de Calcutá para Bangalore para estudar arte.

"Não é que não tivesse assédio em Calcutá , mas eu era nova em Bangalore. Tinha 23 anos e não tinha família perto para buscar proteção", diz ela.

"Também era um momento em que o assédio nas ruas era tratado apenas como uma "provocação", algo que meninos e meninas deviam experimentar. Estava sendo normalizado. Havia um ambiente de negação e silêncio em torno do problema, o que fazia com que continuasse", completa.

Para acabar com esta negação e romper o silêncio, ela decidiu iniciar um debate.

"Um dia, eu reuni todas as estudantes do sexo feminino em uma sala e disse: 'Vamos pensar em palavras que são evocadas em espaços públicos'. Em três minutos, chegamos a um vasto mapa mental apenas de palavras negativas."

O resultado não foi surpreendente - o assédio em lugares públicos é muito comum e quase todas as mulheres já passaram por isso - seja por meio de assobios, comentários obscenos, toques ou carícias.

E quem questiona esse fato costuma dizer que a culpa é das vítimas - por ter uma atitude provocativa, usar roupas que deixam a pele à mostra, sair à noite sozinha, beber demais, flertar... Em resumo, alegam que ela estava "pedindo por isso".

"As meninas são criadas para tomar cuidado, somos criadas em um ambiente de medo, em que falam constantemente para a gente ter cuidado. Se você foi assediada, então talvez você não esteja sendo cuidadosa o suficiente, essa é a mensagem básica que tentam nos passar."

Em 2003, Patheja criou o coletivo Blank Noise para "confrontar" esse medo.

"Acreditamos que a culpa leva à vergonha, a vergonha leva ao silêncio, que faz perpetuar a violência sexual e de gênero", diz.

Há mais de 10 anos, Patheja luta contra a violência sexual e de gênero - Asif Saud - Asif Saud
Há mais de 10 anos, Patheja luta contra a violência sexual e de gênero
Imagem: Asif Saud

O primeiro passo para enfrentar qualquer medo, segundo Patheja, é falar sobre ele. E uma das iniciativas do Blank Noise, como parte do projeto I Never Ask For It, foi reunir relatos de mulheres.

Assim, eles abordaram meninas e mulheres nas ruas de Bangalore e outras cidades, convidando-as a escrever seus depoimentos.

"Quando uma pessoa escreve, encoraja as outras a fazerem o mesmo", diz Patheja.

E voltaram com quadros brancos preenchidos com nomes, idades, incidentes de abuso, o que aconteceu, em que local, a que horas, o que elas estavam vestindo, como reagiram e o que gostariam de ter feito.

Uma mulher escreveu sobre ter sido assediada em um ônibus por um homem de meia-idade e como ela simplesmente mudou de lugar, uma estudante contou sobre como foi perseguida por dois homens em uma bicicleta, e outra vítima relatou que tinha sido molestada várias vezes em diversas cidades.

Há depoimentos de mulheres na faixa de 14 e 16 anos e também em torno de 30 e 40 anos - algumas vezes mais velhas.

Quase todas as mulheres optaram por descrever a roupa que estavam usando no momento do assédio. E, segundo Patheja, foi a partir daí que surgiu a ideia do museu de roupas.

"Nós descobrimos mulheres que se questionavam sobre as roupas que estavam usando. Elas diziam: 'Eu estava usando essa saia vermelha', ou 'eu estava usando esse jeans', ou 'eu estava usando o uniforme da escola'. Então, decidimos inserir essa questão e começamos a perguntar: 'o que você estava vestindo'?".

E Patheja afirma que se surgir o questionamento - eu pedi por isso? - a resposta é um enfático não.

"Eu nunca pedi por isso", ressalta.

"Mas nós pedimos às pessoas que elas se lembrem das roupas e tragam para cá, porque elas têm memória, e essa memória é uma testemunha, é a voz delas."