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Jiboia e tapete de urso polar: A extraordinária "Lady Gaga do séc. 19"

O amante de Casati Augustus John a pintou nesse retrato de 1919 que inspirou um poema de Jack Kerouac - Reprodução
O amante de Casati Augustus John a pintou nesse retrato de 1919 que inspirou um poema de Jack Kerouac Imagem: Reprodução

Fiona Macdonald

Da BBC Culture

30/10/2017 16h08

Em abril de 1917, passados três anos do início da 1ª Guerra Mundial, Pablo Picasso foi a um jantar oferecido pela herdeira Marquesa Luisa Casati em Roma. "Era um contraste tão absurdo com a Paris abalada pela guerra que Picasso havia acabado de deixar que ele manteve uma memória visual muito detalhada daquilo pelo resto de sua vida", escreveu Judith Mackrell em seu novo livro "The Unfinished Palazzo" ("O Palácio Inacabado", em tradução livre).

"Quarenta anos depois, o pintor ainda se lembrava dos lacaios jogando peças de cobre nas lareiras da sala de jantar para que as labaredas ficassem verdes, da jiboia gigantesca que se enrolava em espirais de ouro em um tapete de pele de urso polar e, sobretudo, da aparência impressionante da própria Luisa, em um vestido bordado de pérolas com um colar elizabetano no pescoço e um decote que chegava até o umbigo".

Nascida em Milão em 1881 e órfã aos 15 anos, Luisa Casati se tornou uma figura envolvida em lendas tão elaboradas quanto as roupas que usava.

Extremamente tímida, ela tinha uma coleção de bichos de estimação que incluía uma jiboia que ela usava em seu pescoço, papagaios brancos treinados para se empoleirar em sua janela e um bando de pássaros melros albinos pintados de diferentes cores para combinar com os temas de suas festas.

Ela encomendava ao estilista do Balé Russo peças de roupa ainda mais ousadas - uma das mais famosas era feita de pequenas lâmpadas elétricas que entraram em um curto-circuito e lhe deram um choque elétrico tão forte que ela deu um salto mortal.

A marquesa também era fascinada por ocultismo, carregava bolas de cristal e colecionava réplicas de cera de si mesma, incluindo uma em tamanho real com uma peruca feita de seu próprio cabelo. Ao receber pessoas para jantar, ela colocava a réplica sentada ao seu lado e, sob a luz turva de velas, seus convidados não sabiam qual era a verdadeira Luisa.

Casati - Hulton Archive/Getty Images - Hulton Archive/Getty Images
Quando Casati usou essa roupa do designer León Bakst, do Balé Russo, em 1922, a imprensa disse que ela "fez da noite veneziana sua escrava"
Imagem: Hulton Archive/Getty Images

Casati impressionava fisicamente e realçava suas características de uma maneira pouco comum, como descrito em um perfil seu publicado na revista americana The New Yorker em 2003.

"A marquesa era muito alta e cadavérica, com uma cabeça em forma de punhal e um rosto pequeno e feroz que era inundado por olhos incandescentes. Ela iluminava as pupilas com beladona (planta que tem efeitos psicoativos) e escurecia seus contornos com tinta kajal (antiga tinta para o contorno dos olhos), colando uma franja curta ou cílios falsos e faixas de veludo preto às pálpebras", escreveu Judith Thurman em um artigo ilustrado por Karl Lagerfeld, um fã de Casati.

"Ela usava um pó branco cor de fungo no rosto e pintava seu cabelo de maneira que parecesse uma coroa de chamas. Seus contemporâneos não conseguiam decidir se ela era uma vampira, uma ave do paraíso, uma andrógina, uma deusa, um enigma ou uma lunática."

Licença poética

Ainda assim, Casati não era só uma excêntrica exibicionista, como diz Mackrell em seu livro. Suas festas - e as fantasias que usava nelas - não eram apenas um evento social, mas performances coreografadas. Ela queria ser "uma obra de arte viva".

A herdeira "viveu os períodos da decadência da belle époque e do início do modernismo em relação à arte que apreciava e à maneira como queria se apresentar ", diz Mackrell à BBC Culture.

O poeta Ezra Pount imortalizou seu jeito de pavoa no seu poema épico The Cantos e o fotógrafo Man Ray a descreveu como "uma versão surrealista da Medusa" porque ela não conseguia parar de mexer ao posar para ele.

Casati amava tanto o retrato borrado feito por Man Ray, no qual ela aparece com três pares de olhos, que ela o enviou a todos os seus amigos, incluindo ao seu amante Gabriele d'Annuzio.

A roupa que eletrocutou Casati era em si uma obra de arte: as lâmpadas estavam no topo de centenas de flechas que furavam uma armadura prateada e, ao adotar a tecnologia moderna, queria mostrá-la como parte dos futuristas (um grupo de artistas que adotavam a nova era das máquinas).

Outra roupa, usada em 1924 no Baile de Beaumont em Paris (um evento com uma lista de convidados tão restrita que Coco Chanel foi excluída por ser muito 'comercial'), era uma homenagem a Picasso e aos cubistas. Feita inteiramente de fios e luzes, era muito larga para a entrada do baile: o artista Christian Bérar, que presenciou a tentativa de Casati de se espremer pela porta, diz que ela caiu como "um zepelim esmagado".

A italiana inspirou pintores e escultores tanto como musa quanto como tema. O líder dos futuristas, Filippo Tommaso Marinetti, disse que ela manteve seu movimento avant-garde vivo durante a 1ª Guerra Mundial e rededicou um de seus primeiros autorretratos "à grande futurista Marquesa Casati, com os olhos lânguidos e satisfeitos de uma pantera que acabou de devorar as grades de sua jaula".

Casati posou para Giovanni Boldini, que havia pintado o compositor Giuseppe Verdi, a atriz Sarah Bernhardt e o pintor James Whistler. Quando seu retrato foi revelado em Paris em 1909, o jornal Le Figaro elogiou a intensidade de sua "aparência de bruxa". Ela também foi pintada por Augustus John e Jacob Epstein a esculpiu em bronze.

Tudo isso, é claro, a colocava nas páginas de fofoca. "Por mais malucas que algumas de suas atitudes fossem, e extravagantes e sem sentido, o que eu amo nela é que não havia vulgaridade nelas - havia uma pureza em seu desejo de ser uma peça de arte e nada mais", diz Mackrell.

"Apesar de ela adorar chamar a atenção, isso era como oxigênio para seu trabalho. Ela se enxergava como um ator ou um diretor de teatro que precisava de um público, não era uma busca de se tornar celebridade". As fofocas aumentavam seu status de patrona da arte.

Man Ray retratou Luisa Casati em uma fotografia de 1935 - Reprodução - Reprodução
Casati apareceu pela última vez no Baile Beaumont de Paris em 1935 vestida como imperatriz Elizabeth da Áustria. Nesta foto, ela foi retratada por Man Ray
Imagem: Reprodução

"Se você pintasse seu retrato ou se ela comprasse uma peça sua, isso lhe dava muito prestígio", afirma a biógrafa.

E Casati alimentava essa mitologia, apesar de as lendas sobre ela terem tornado sua biografia caótica. Os rumores sobre ela aumentavam seu misticismo, mas também a escondiam.

"O desafio de escrever sobre ela era tentar descobrir quem era a mulher por trás dessa série extraordinária de mitos, histórias, rumores e fofocas", diz Mackrell.

"Era muito frustrante porque havia tão poucos registros de sua voz em forma de diários ou de cartas que foi necessário um mergulho nas evidências, e comparações de algumas das histórias fabricadas com outras versões do mesmo episódio para tentar chegar ao que parecia a versão mais plausível da verdade."

Fofocas

Mas, talvez, a ideia não seja essa: Casati gostava daqueles que transformavam seus excessos e sua decadência em uma verdade enfeitada.

Dizem que ela caminhava por Veneza à noite com seus leopardos de estimação e completamente nua por baixo de um casaco de pele. E que muitos de seus criados morreram depois de serem cobertos de tinta dourada tóxica.

Um rumor, de que ela encomendou réplicas de cera dentro das quais guardava restos cremados de ex-amantes, era estranhamente parecido com uma história sobre sua heroína de adolescência, a princesa italiana Cristina Trivulzio.

Trivulzio, que também foi escritora e jornalista, era conhecida por seus rituais bizarros de luto por seus amantes mortos e tinha semelhanças com Casati. Era uma criança introvertida que herdou uma fortuna e não conseguia se encaixar na sociedade.

A marquesa chegou a tentar contatar o espírito de Trivulzio e deu seu nome à sua filha Cristina. Talvez as semelhanças fossem além do que ela havia percebido. Como diz Mackrell em seu livro The Unfinished Palazzo (sobre o palácio veneziano em que Casati deu alguma de suas noitadas mais espetaculares),"Trivulzio era na verdade uma mulher impressionante, uma feminista do século 19, uma pensadora livre, uma escritora e uma ativista política" - e ainda assim ela só ficou famosa pelos "rumores necrófilos envolvendo sua vida sexual".

A marquesa italiana Luisa Casati em uma foto da primeira década do século 20 - Mondadori Portfolio via Getty Images - Mondadori Portfolio via Getty Images
A marquesa italiana Luisa Casati em uma foto da primeira década do século 20
Imagem: Mondadori Portfolio via Getty Images

Casati pode ter alimentado de propósito as histórias sobre o que ela fazia ou vestia - o que incluia um vestido de plumas de garça que mudavam de cor conforme ela se mexia, uma grinalda de penas de pavão com o sangue de uma galinha recém-morta e, numa viagem ao Grand Canyon, nos EUA, calças de pele de leopardo, um sombreiro e um véu de renda.

Suas performances zombavam das convenções e eram também uma tentativa de chocar. "Tudo a respeito ela era surpreendente - ela parecia viver sua vida de acordo com regras sociais, emocionais e visuais diferentes das de todo mundo", diz Mackrell.

"Eu fiquei interessada na maneira como mulheres podiam ser excepcionais ou livres naquela época... viver a vida com suas próprias regras em vez daquelas ditadas pelos homens com quem se casavam ou dos pais com quem ficavam em casa", diz ela.

"Ela conseguiu se tornar essa criatura memorável por causa de sua riqueza, mas também pelo fato de que a sociedade estava começando a mudar no final do século 19, começo do século 20 - havia fendas se abrindo que permitiam a uma mulher como ela fazer algo extraordinário também - talvez mais cedo ela tivesse sido reprimida."

Vestido chocante

Mackrell compara Casati à cantora Lady Gaga, que também superou a timidez com "transformações extraordinárias em sua aparência, vestido e maquiagem, de modo a criar uma persona para viver confortavelmente no mundo".

No entanto, o efeito chocante da aparência de Casati foi maior por causa do período em que ela viveu. "O contexto ainda tinha normas sociais e comportamentais tão rígidas que talvez fosse possível ser ousada de uma forma mais pura."

Os acontecimentos históricos - e seus gastos desenfreados - levaram Casati à falência. "A crise de Wall Street nos anos 1930, que explodiu a bolha dos anos 1920, acabou completamente com ela", diz a biógrafa.

Casati devia milhões de dólares e foi forçada a vender todas as suas propriedades. Depois disso, ela se mudou para um apartamento de um quarto em Londres, onde recebia apenas algumas visitas (incluindo o fotógrafo Cecil Beaton) e organizava sessões espíritas.

Segundo uma testemunha, ela costumava procurar pedaços de veludo em latas de lixo vestindo usando chapéu de pele surrado e uma echarpe feita de jornal.

Casati morreu de um infarto em 1957 aos 76 anos de idade e foi enterrada com seu cachorro pequinês embalsamado e um par de cílios falsos.

Sua influência persistiu além de sua morte: as atrizes Vivien Leigh e Ingrid Bergman interpretaram personagens baseadas nela, e ela serviu de inspiração para estilistas como John Galliano, Alexander McQueen e Dries Van Noten.

O escritor beatnick americano Jack Kerouac também escreveu um poema sobre ela. "Ela trazia essa sensação de dançar na beira do abismo", diz Mackrell. "As pessoas se agarram a estas ideias quando suas vidas estão caóticas."