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A luta dos circos brasileiros pela sobrevivência

Em São Paulo

25/02/2017 16h43

Tatuapé, zona leste de São Paulo, tarde de sábado. A lona abafa ainda mais o ar, mas nada desanima as crianças que voltam para suas cadeiras após o intervalo.

Começa o segundo ato e a alegria presente até ali com as apresentações de malabares, equilibrista, palhaço e globo da morte agora se transforma em euforia: a criançada invade a área VIP do circo e até mesmo o palco, obrigando pais e funcionários a promover uma "caçada" aos pequenos.

O que provoca todo esse frisson não é nenhuma das clássicas apresentações circenses, mas sim os palhaços Patati Patatá, atração da televisão que tomou conta do picadeiro do circo Stankowich.

Um sinal dos tempos de disputa de atenção com a internet, inaugurados pela lei que proibiu a apresentação de animais nos espetáculos.

O ânimo dos pequenos contrasta com a preocupação do dono, que busca se adaptar e sobreviver a essa nova era.

"Me dói ver o circo assim e sem os bichos, mas é isso, não tem outro jeito", diz Marlon Stankowich, administrador que representa a sexta geração da família circense considerada a mais antiga em atividade no país, com 161 anos de estrada.

É possível que o circo nunca tenha tido que se renovar tanto desde 1856, quando o patriarca romeno Pedro Stankowich chegou ao país.

Plateia pela metade

Ocupando uma área de mais de dez mil metros quadrados, o Stankowich tem 3 trailers de moradia para artistas, 23 carretas e leva pela estrada mais de 800 toneladas de equipamento.

O irmão de Marlon, Márcio Stankowich, cuida da outra lona da trupe, que está fazendo tour em Santos, no litoral paulista. Ao todo, são 120 funcionários.

Mas mesmo em pleno sábado, a plateia não está lotada - metade dela, talvez.

Marlon diz que o movimento já foi melhor e que este não é exatamente o público do circo, mas outro, nas suas palavras, mais "gourmet".

"Esse público é do Patati Patata, quem gosta mesmo de circo sente falta dos números clássicos", afirma ele, que foi palhaço, trapezista e depois domador. Com o veto aos bichos, passou a gerenciar o negócio da família.

"Segurei o espetáculo só com as atrações circenses até o ano passado."

Para sobreviver, explica, o jeito é ficar atento ao que ocorre em outros circos e espetáculos, como é o caso do número que inclui um "King Kong" de 11 metros de altura, e deixar o segundo ato para os personagens da Disney ou da TV, caso do Patati Patatá.

"Não temos outra opção, a crise é forte. E não é diferente para nós."

Em outros momentos, conta, atrações de fora também foram chamadas ao picadeiro, mas nunca exisitu uma transformação tão intensa no espetáculo como agora.

Hoje, as estratégias usadas para tentar preencher os espaços vazios da plateia incluem a venda de ingressos em sites de ofertas e até a divulgação da programação em sites de relacionamento.

De Frozen a Patati Patatá

A representante comercial Silvana Rita Fernandes, de 56 anos, trouxe a neta Flávia, de 5, especialmente para ver o segundo ato do show.

"Viemos por causa do Patati Patatá, mas o que nos traz ao circo é um bom show", conta. "A gente vem pra trazer eles, porque adulto quando não tem dinheiro não vem, mas se é pra criança a gente dá um jeito. Mês passado viemos ver a Frozen (espetáculo inspirado em desenho da Disney)", diz, enquanto paga para que a menina tenha o rosto pintado de palhaço.

Além da maquiagem na praça de alimentação, também são comercializados balões de personagens de animações do cinema ou TV, além de mochilas, canetas e fantasias da dupla de palhaços.

Fernandes é uma das espectadoras que viveu a era dos animais no circo. Mas diz não sentir saudades deles.

A cantora Adriana Ribeiro, de 43 anos, diz o mesmo. Para ela, que trouxe o enteado, o circo não precisa dos animais - e o espetáculo vale mais que o valor do ingresso.

"Se vem um Cirque du Soleil, as pessoas vão pagar R$ 500 pra sentar longe. Por que não pagar para os artistas brasileiros?", questiona. "Sou do tempo que se subia em árvore, fazia muito que eu não vinha ao circo. Tocou o meu coração."

Bom pra eles, bom pra nós

Diretor artístico e coreógrafo da dupla Patati Patata, Oswald Berry, de 60 anos, afirma que os sucesso da dupla ajuda ambos os lados.

Coreógrafo que já trabalhou com Xuxa e outras atrações famosas, ele diz não saber se Patati Patata vão salvar o circo, mas que o local "é uma grande escola para todo o artista e mantém a chama viva".

Ele lembra que 20 anos, 30 anos atrás muitos artistas faziam circo, incluindo "os Trapalhões e a Eliana, por exemplo".

"Patati Patatá não nasceram no circo, mas em nenhum outro tipo de espetáculo se aprende tanto: são seis apresentações em dois dias".

A dupla de palhaços chega a fazer cerca de 80 apresentações por mês em companhias das maiores cidades brasileiras.

"O circo anda um pouco desmerecido, e levar o Patati à segunda parte do show auxilia na bilheteria e leva o público a conhecer o circo", avalia, antes de explicar que a equipe do Stankowich o convidou para fazer a coreografia de abertura e encerramento do show.

"O circo é uma grande família e muitos truques acabam ficando somente entre eles. Na semana passada vi aquele número da menina pendurada pelo cabelo e isso é muito difícil, é lindo. Uma vez assisti desmontar e montar uma lona e digo: é coisa de loucos, a força deles, é um trabalho braçal incrível."

Sobrevive por teimosia

"No Brasil devem existir cerca de 2 mil circos, mas não temos esse número exato", diz o dono da Escola Circo Picadeiro e tesoureiro da Associação Brasileira do Circo (Abracirco), José Wilson Moura Leite.

Além da escola, ele é representante da terceira geração do circo Spadoni, que tem 30 funcionários.

Ele afirma que, como existem muitas companhias de circo no Brasil, é quase impossível contá-las - mas o fato é que todas passam por grandes dificuldades.

"Vão sobreviver porque são teimosos", resume. "Lá no Spadoni nós também chamamos esses personagens de TV e outras atrações, acaba sendo o que atrai mais gente."

Para Leite, a proibição dos animais foi um golpe forte para a categoria, e faltou ajuda do governo para compreender a questão.

"Não existe lei federal sobre o assunto, mas leis municipais", diz, antes de afirma que, na sua visão, o maior problema não é a lei, mas as ONGs que fazem campanhas e protestos: "alguns deitavam em frente à bilheteria para impedir a compra de ingresso".

"Se fosse feita uma pesquisa com o púlico do circo, ganharíamos de lavada. As pessoas vivem me perguntando porque não tem animal."

ONGs, por sua vez, afirmam que não há nenhuma garantia de que o animal vá ser bem tratado no circo. "O uso deles para divertimento humano já é questionado há muito tempo fora do Brasil, não é necessário", afirma o presidente da ONG Arca Brasil, Marco Ciampi.

Modelo transformado

A coordenadora do Centro de Memória do Circo de São Paulo, Verônica Tamaoki, de 58 anos, afirma a maior dificuldade atual é o alto custo de manutenção das trupes.

Além disso, ela diz que o circo acabou sendo um bode expiatório na questão dos animais. "Não que só tenha gente boa no circo, não é isso, mas a questão foi tratada com muito radicalismo."

Professor do Departamento de Artes Cênicas da Unesp (Universidade Estadual Paulista), o especialista em circo Mario Bolgnesi vê uma grande transformação no modelo atual de espetáculo.

Na avaliação dele, todos estão tendo de rever seus formatos. "Até o mais antigo das Américas está fechando, o Ringling Brothers de Nova York", lembra.

Bolognesi destaca que os problemas envolvem não somente a restrição ao uso dos animais, mas o lugar dele na atualidade, em tempos de concorrência com TV, internet e outros.

"Os modelos de espetáculo ainda estão parados nos anos 70, seguem o ritmo do rock e do pop. O circo precisa encontrar novos ritmos."

Bolognesi lembra que mesmo o Cirque du Soleil - circo canadense sucesso no mundo todo que sempre é citado como modelo - não fez tanto sucesso assim no Brasil.

"É preciso se readequar a novas formas e não sei se um circo tão grande, para 3 mil pessoas, ainda tem viabilidade nos dias atuais. Além disso, hoje em dia qualquer atividade necesita de investimento em propaganda e marketing. Não adianta mais simplesmente passar na praça como era antigamente", fala.

A polêmica dos animais

No Brasil, existem leis em 11 Estados proibindo o uso de animais no circo. "Eu não acho que se deva ser conivente com maus-tratos a animais, não sou nem nunca fui favorável a isso. Mas se deveriam ter tido mais cuidado com a questão", opina o professor da Unesp.

Já o Presidente da ONG Arca Brasil, Marco Ciampi, afirma que é importante que exista uma conscientização da relação homem-animal no país.

Ele lembra que o primeiro Estado que proibiu o uso de animais foi Pernambuco, após um trágico caso no ano 2000 de um menino de seis anos que foi atacado por leões na área das jaulas de um circo que se apresentava no Recife.

"Esse fato levantou a questão no país e nós também lutamos pela proibição, mas é preciso analisar bem para onde vão os animais".

Ciampi conta que já viu alguns sofrerem muito no meio da briga entre os donos de circo e a lei, e que também é preciso ter cuidado para não alimentar o tráfico ilegal.

Ciampi, que trabalha há 24 anos com a questão, destaca o Cirque Du Soleil como um bom exemplo de circo que dá certo sem uso de animais.

Para ele, a questão é mais profunda e é a consciência do público que vai decidir sobre isso: "As pessoas devem se questionar: eu preciso ir lá ver um espetáculo medieval que usa animais para minha diversão?".