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Carnaval de rua é exemplo de "crise do conceito de cidadania", diz André Sturm

O secretário de cultura de São Paulo, André Sturm - Sylvia Masini/BBC Brasil
O secretário de cultura de São Paulo, André Sturm Imagem: Sylvia Masini/BBC Brasil

Néli Pereira

Da BBC Brasil, em São Paulo

08/02/2017 11h45

Desde que assumiu a secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, em janeiro, André Sturm teve que lidar com medidas que causaram polêmica e discussão: dos grafites apagados na avenida 23 de Maio a mudanças em populares eventos de rua, como a Virada Cultural e o carnaval dos blocos.

Com experiência anterior em gestão - foi responsável pela reabertura do Cine Belas Artes e dirigiu o Museu da Imagem e do Som (MIS), que, com exposições como as dedicadas a Tim Burton, David Bowie e o Castelo Rá-Tim-Bum, fez o público do espaço saltar de 44 mil visitantes em 2009 para mais de 600 mil em 2014 - ele acredita que o foco da política cultural de São Paulo deve ser a população e a melhoria dos locais já existentes da Prefeitura.

Sobre os eventos nas ruas, ele disse à BBC Brasil que há uma crise no conceito de "cidadania".

"Cidadania virou sinônimo de: 'eu tenho direito', quando cidadania é 'eu tenho dever'. Eu sou cidadão porque entendo que vivo numa comunidade e tenho que respeitar o meu vizinho. E cidadania agora virou 'eu sou cidadão, então eu posso'."

Leia abaixo trechos da entrevista:

BBC Brasil - Sua indicação para a pasta de Cultura da cidade foi elogiada por setores da classe artística porque o senhor representa alguém de perfil mais técnico que político. Mas como está sendo lidar com as pressões e questões políticas?

André Sturm - Ainda é cedo, sou secretário há um mês, embora indicado há dois. Eu sempre fiz política, não partidária, mas fui da Associação de Curta Metragem, do Sindicato da Indústria do Cinema, sempre tive envolvido com esse outro lado, como militante da Cultura, na luta por leis, apoios, negociando com executivos.

Sou um técnico, mas com certo jogo de cintura. Isso ajuda porque chego para visitar um local e encontro a comunidade, os artistas, sempre com uma postura agressiva - hoje a gente vive um momento em que todo mundo agride, ninguém mais dialoga, as pessoas agridem, reclamam. Sou secretário há 15 dias e já estão criticando - então é bom ter jogo de cintura, para saber separar o que é acusação gratuita do que pode ter embasamento.

A secretaria teve 43,5% da verba congelada. Quais incentivos e projetos serão mais afetados?

É importante esclarecer esse congelamento, porque parece que foi uma decisão do prefeito e nesse caso é importante uma informação técnica. O que houve foi uma decisão da Fazenda (Ministério da Fazenda) de congelar 25% das Atividades (existentes) e em 100% os Projetos novos.

A Cultura é um setor que mobiliza, então, no ano passado vários grupos foram à Câmara Municipal pressionar por verbas. Um exemplo: o pessoal do teatro foi lá pedir um "Programa de Fomento ao Teatro" específico, de R$ 18 milhões - e a dança, o circo, todo mundo pediu coisa semelhante. O que aconteceu foi que R$ 90 milhoes que eram Atividade viraram Projeto e acabaram congelados integralmente.

Agora estou negociando com a Fazenda para tentar descongelar essa parte imediatamente. Então, eu não tenho a resposta para te dar, porque vai depender do que vou conseguir descongelar para poder definir o que vamos fazer. O congelamento de 25% de Atividade eu vivo com isso, realoco. Mas os que eram para ser Atividade, viraram Projeto por um erro da Câmara, e acabaram também congelados, zerando assim o orçamento para o fomento ao teatro, à programação das bibliotecas, etc.

No país, houve, ao longo do tempo, visões diferentes sobre a gestão de cultura, sobre o papel do poder público e da iniciativa privada, sobre o que deve ser promovido e o que não deve. Que tipo de política cultural a cidade de SP tentará fazer?

Tem alguns conceitos: foco em estimular os equipamentos, a prefeitura tem muitos equipamentos e vamos fazê-los funcionar bem - tanto do ponto de vista de infraestrutura e, principalmente, de programação.

Segundo: focar na população, não no empoderamento de coletivos de artistas. Não é pegar a Casa de Cultura e entregar para a gestão de três ou quatro coletivos de artistas da região fazerem o que acharem que têm de fazer - que é ficarem se apresentando para eles mesmos.

Nosso foco é a população, não é empoderar coletivos de artistas.

Para nós, é importante que a Casa de Cultura seja uma referência no bairro e é claro que os artistas da região são parte integrante disso, mas não são o vetor. O artista é o meio e não o fim da nossa política pública.

Houve uma discussão intensa sobre a Virada Cultural. Foi anunciado que o evento iria para o Autódromo de Interlagos, que seria privatizado, tirado do Centro, e depois um anúncio de que alguns lugares do Centro também teriam programação, mas diferente do que vinha sendo feito. A Virada vai ser menos na rua e mais concentrada na infraestrutura disponível da prefeitura? E nesse sentido vai ser menor?

Fafá de Belém, Agnaldo Timóteo e Angela Maria em show durante a Virada Cultural - Rafael Guimarães/BBC Brasil - Rafael Guimarães/BBC Brasil
Fafá de Belém, Agnaldo Timóteo e Angela Maria em show durante a Virada Cultural
Imagem: Rafael Guimarães/BBC Brasil
Maior ou menor depende do número que usa - número de pessoas atendidas? Não necessariamente menor. Número de locais com programação? Maior, com certeza. Antes você tinha palcos enormes que atraíam muita gente de uma vez só. A gente vai espalhar mais. Entre a Biblioteca Mario de Andrade e o Theatro Municipal, por exemplo, a rua Xavier de Toledo vai virar um palco, a rua vai virar um palco, sem que tenha um palco colocado - uma dupla aqui, um coral ali. Quando você caminhar pelo Centro, vai vivenciar atividades culturais o tempo todo.

Não quero que a Virada Cultural seja um evento enorme que traz um milhão de pessoas que vêm, assistem a um show de graça e vão embora. Eu gostaria que as pessoas entrassem no Theatro Municipal e voltassem ao longo do ano, que a Virada seja efetivamente uma alavanca de formação de público o ano todo.

A Virada é um dos exemplos do receio de parte da população de que haverá um controle maior das manifestações culturais que acontecem nas ruas. Há alguma prática prevista nesse sentido?

A rua vai estar cheia de atividades. A diferença é que em vez de colocar um palco que tem 50 mil pessoas, um monte de caixas de som que atormentam quem mora em volta e o grande fluxo de gente...você vai caminhar em blocos menores de pessoas e, nos caminhos, vai ter atividade cultural de rua. É isso que queremos mudar.

Eu fui a várias Viradas, você tem um show X, desembarca um monte de gente do metrô e trem, aquelas pessoas param na frente do palco, assistem ao show e vão embora...

Ao mesmo tempo tem gente que aproveita a movimentação para passear à noite pelo Centro, quando não fariam em outra ocasião...

Claro que tem, mas o que eu quero dizer é que tem um monte de gente que só vem ver um show grátis - essas pessoas terão programação em todos os bairros, elas não precisam vir até o Centro. Para quem vier ao Centro, vamos ter um monte de programação nos locais abertos, você vai caminhar de um para outro.

Não podemos achar que porque eu e você achamos legal ter show na rua, os outros 500 moradores do bairro que não curtem têm que aturar porque nós é que somos cidadãos, que lindos, vamos ocupar a rua

A Virada acabava tendo um efeito muito maior de multidão - de atingir milhões de pessoas que depois passavam 364 dias no ano sem voltar ao Centro e a gente quer mudar isso, queremos que elas venham ao Centro com regularidade.

E eu acho que fazer um uso mais equilibrado da rua e do espaço público é uma preocupação que temos que ter, porque não podemos achar que porque eu e você achamos legal ter show na rua, os outros 500 moradores do bairro que não curtem têm que aturar porque nós é que somos cidadãos, que lindos, vamos ocupar a rua. Peraí cara pálida, tem quem gosta e tem quem não gosta e precisamos equilibrar isso.

Você lidou com isso quando estava na direção do MIS - parte dos moradores do entorno fizeram abaixo-assinado porque o museu levava muita gente para a região. Como essa experiência lhe ajuda a lidar com o que está acontecendo agora na cidade?

Da mesma maneira - parte da reclamação das pessoas naquela época era pura picuinha, preconceito de classe. Porque quando a exposição do David Bowie lotava ninguém achava ruim, mas quando a população da periferia começou a vir para o Jardim Europa e apareceu camelô, aí não servia. Trabalhamos para acabar com filas. Ali foi preconceito, mas parte daquilo tinha razão. O que fez sentido, a gente atendeu.

E o carnaval? Parte da população reclama do barulho, da sujeira, da urina, enquanto parte está pulando. Há quem goste e quem não goste - como equilibrar?

O carnaval de rua é um bom exemplo. Carnaval pressupõe festa, todo mundo sabe, portanto, prepare-se para festa. Um monte de gente quer fazer um bloco e desfilar? Vamos estipular um horário - de tal a tal hora. Quem mora naquela rua, já sabe que nesse horário tem carnaval, sai mais cedo, vai para casa de alguém, volta quando termina.

O que não dá é quando chegar no horário do término eu ainda não conseguir entrar em casa porque a porta está catastrófica. É isso que acho que cabe à prefeitura: equilibrar interesses que são legítimos.

Carnaval é festa, bloco de rua é manifestação genuína, espontânea, cultural, que gera turismo, negócios. Mas vamos organizar um pouco. O que a gente pretende fazer é organizar melhor.

A prefeitura já anunciou algumas mudanças - taxação de blocos que vêm de fora de São Paulo, transferência de blocos com mais de 20 mil pessoas para uma região específica da cidade. Como vai ser essa nova organização do carnaval de rua de SP?

O Bloco do Baixo Augusta leva 300 mil pessoas e vai continuar no mesmo lugar. Todos os blocos que já desfilaram em SP no passado tiveram os circuitos mantidos, salvo raras exceções que deram muito errado. Não foi nada radicalmente imposto.

Blocos novos - aí sim - foram alterados. Algumas avenidas foram proibidas, como a Rebouças que é uma artéria que não tem opção de ser fechada. Os blocos de fora também - um deles, que leva 30 mil pessoas, queria desfilar na Vila Madalena, e não tem como. Então decidimos que para não proibir ninguém, criaríamos esse circuito na avenida Tiradentes que, para montar, tem um custo enorme, chegou-se a um valor, proposto por nós.

Mas o carnaval já tem um patrocínio de R$ 15 milhões, não cobre?

Mas isso é para o que já tinha. No ano passado, com 290 blocos, gastou-se R$ 11 milhões. Neste ano, com 490, fora os blocos grandes, vamos gastar perto de R$ 15 milhões. Para o circuito novo, tem um custo adicional. Então a gente propôs um valor, até porque esses são blocos grandes, com patrocínio, ação comercial - a gente achou que era justo eles pagarem. A maior parte negou.

O que vai acontecer com blocos que não cumprirem as restrições de horário? Ano passado teve repressão, bomba de gás, etc... Sei que não é a Secretaria que define isso, mas como vai funcionar o cumprimento de horário?

Quem toca são as prefeituras regionais - cada um lidou de uma forma, embora a Secretaria faça a grande coordenação. A gente está tentando fazer uma conscientização. O carnaval de rua é um bom exemplo da crise de um conceito que é a cidadania. Porque cidadania virou sinônimo de: "eu tenho direito", quando cidadania é "eu tenho dever".

A gente está apostando que o carnaval deste ano seja em que a cidadania, no sentido de entender que eu faço parte de uma cidade, comece a se tornar visível.

Eu sou cidadão porque entendo que vivo numa comunidade e tenho que respeitar o meu vizinho. E cidadania agora virou "eu sou cidadão, então eu posso". Não. Então a gente está apostando que o carnaval deste ano faça com que a cidadania, no sentido de entender que eu faço parte de uma cidade, comece a se tornar visível.

Beco do Batman em São Paulo - Rafael Guimarães/BBC Brasil - Rafael Guimarães/BBC Brasil
Grafite no Beco do Batman em São Paulo
Imagem: Rafael Guimarães/BBC Brasil

Ao dizer onde e quando podem ocorrer, a prefeitura não está acabando com a espontaneidade de manifestações como o carnaval e o grafite?

Não é a Prefeitura que vai dizer. A Prefeitura é agente da maioria da população - precisa estabelecer normas para que a maioria fique satisfeita. Sempre vai ter gente insatisfeita. Essa coisa do espontâneo é muito legal, desde que não incomode outras pessoas.

Então agora eu decido tomar sol nu no meio da rua Cardeal Arcoverde. Não, não pode. "Mas como não pode? Somos parte da natureza, do corpo, do asfalto". Não pode.

É como o pixo. Pixo é vandalismo. Não é arte, não é manifestação nenhuma. Quando essa discussão começou, um monte de gente me escreveu sugerindo que respondêssemos aos intelectuais que defendem pixo como arte para que entregassem seus endereços para que suas casas pudessem ser pixadas. É vandalismo, que nem arrebentar orelhão. Você está destruindo o direito do outro.

Uma das medidas do prefeito que tem gerado mais discussão, relacionada com a secretaria de Cultura, é a destruição dos grafites da avenida 23 de Maio. A justificativa foi que estavam mal conservados, com pixo por cima. Depois da pintura, se decidiu que ficou "muito cinza" e voltou-se atrás, dizendo que novos grafiteiros as pintarão novamente. Como será feita a escolha? E como ficarão os outros locais com grafites, como o Beco do Batman?

Ninguém é contra o grafite, nem o prefeito, nem o secretário da Cultura. O (projeto) Cidade Linda prevê cerca de 20 ações de recuperação da cidade, um monte de coisa bacana. Entre as ações está a de pintar as paredes. Na 23 de Maio havia os grafites autorizados - ninguém lembrou disso, nós até avisamos, tanto que a gente conseguiu preservar alguns grafites. Mas acabou-se pintando.

Foi à revelia da Secretaria?

Não foi à revelia, não fomos consultados, não fazíamos parte do Cidade Linda. Nós lembramos e avisamos: "Ó, pelo menos os grafites que estiverem em bom estado, não apaguem". E aí você pode me dizer: "Tinha um que estava em bom estado e foi pintado". É como uma guerra, morrem pessoas - mas é uma guerra. Não estou dizendo que seja uma guerra.

Não vai haver uma grafitagem na 23 de Maio como era antes, o prefeito vai fazer outra coisa ali, vai anunciar em breve e não cabe a mim falar sobre isso.

Em relação à cidade, estamos fazendo reuniões com grafiteiros e interessados e vamos apresentar uma proposta de ação na cidade que tem duas linhas: uma delas é o apoio a ações de grafite em locais que a gente pretende chamar de "Museus de Arte de Rua".

Isso vai acontecer em espaços definidos e delimitados pela prefeitura?

Serão em locais que a prefeitura vai oferecer. Não quer dizer que em outros lugares não se pode grafitar. Onde puder grafitar, quem quiser grafitar, grafita. Ninguém vai ser reprimido.

Nem apagado?

E nem apagado, a princípio. Mas se você grafitar um prédio público que não podia ser grafitado, será apagado. Mesma coisa se você grafitar um prédio privado que não poderia, o dono vai apagar. Não vai ter uma política de cobrir grafites.

E o que a gente vai fazer não é dizer "não pode grafitar aqui ou em lugar nenhum". O que vamos fazer é oferecer áreas, disponibilizá-las, ajudar com material e dizer: nesse fim de semana, está livre aquele espaço para grafitar e os artistas vão se organizar, não vamos escolher quem grafita, quem não grafita. Vamos fazer parcerias com grupos de grafiteiros nas regiões.

Eu acho que ao fazer isso, a prefeitura sinaliza - para os agentes de repressão inclusive - que grafite não é crime, que grafiteiro não é bandido.

Mas teve um grafiteiro que foi preso neste mês depois da ação na 23 de Maio.

Já teve a ação de grafite? Não. É isso que estou dizendo.

Mas então até que seja feita a ação, pode ou não pode continuar grafitando?

Aquele grafiteiro foi preso porque ele estava na 23 de Maio apagando o cinza sobre o grafite dele.

Então na Avenida 23 de Maio não se pode mais grafitar?

Na 23 de Maio... eu não sei. Não vou falar - porque ela virou uma questão. Mas se tiver um muro onde não está escrito "não grafite" - há uma diretriz para que essa pessoa não seja detida. O que a gente quer fazer é apoiar uma ação de grafite em local disponibilizado pela prefeitura, para que a população perceba que grafite não é criminoso, não é marginal.

Queria até propor ao prefeito estabelecer que, onde não se pode grafitar, se coloque uma plaquinha.

Mas parte da população já não acha o grafite criminoso - por isso a polêmica surgiu. A prefeitura não está querendo ordenar e organizar um movimento espontâneo?

Com essas ações, a prefeitura não está dizendo que não se pode fazer grafite fora desses encontros, mas está manifestando seu apoio a isso. A gente quer ajudar a legitimar e desmarginalizar, sem tirar o caráter rebelde.

Na hora em que a gente apoia o grafite, a gente não se apropria dele. Apropriar-se-ia caso baixássemos decreto proibindo grafite fora dos festivais. Mas não é isso. Grafite onde quiser, onde se possa.

Grafite, blocos de carnaval de rua, a Virada - esses temas tomaram conta das discussões sobre a Secretaria. Em quanto tempo acha que terá chance de mostrar os outros projetos?

Eu tenho uma data, 5 de março, que é quando penso em começar a cuidar do que interessa, último dia do carnaval de rua de São Paulo. Vencida essa etapa, acho que o grafite vai estar superado, o carnaval vai estar superado, a Virada já vai estar encaminhada, as pessoas já vão entender que não vai ser de exclusão, que estamos ocupando a rua de maneira efetiva, e não correndo de um lugar para o outro com medo de ser assaltado e espero poder mostrar o que estamos nos preparando para fazer: as bibliotecas vivas, reforço nos equipamentos culturais, política de leitura, regulamentar a lei municipal de incentivo à cultura, um monte de coisas concretas e que vão gerar muitos benefícios. Espero que a partir de 6 de março eu dê entrevista para falar disso.