Romance inédito de Jorge Amado "foi abandonado por desilusão com comunismo"
"O relógio discordava dos móveis da sala, antigos e pesados, um relógio pequeno e moderno, presente que Dalva recebera no último aniversário." Essas são as primeiras linhas de um romance inédito de Jorge Amado (1912-2001), batizado com dois títulos: "Agonia da Noite" e "São Jorge dos Ilhéus".
Ambos acabaram sendo os nomes de duas outras obras posteriores do escritor, que não se assemelham em nada com o romance perdido.
A obra inacabada passou mais de sete décadas na clandestinidade e atualmente vive silenciosa no Departamento de Literatura e Memória da Universidade Federal de Santa Catarina. Para a atual guardiã da obra, Jorge Amado teria se desiludido com a ideologia comunista e nunca quis rever os manuscritos.
No auge da militância política, em 1941, Jorge Amado se exilou em Buenos Aires a pedido do PCB (Partido Comunista Brasileiro) para escrever a biografia de Luís Carlos Prestes.
Cinco anos antes, Prestes e sua companheira Olga Benário haviam sido presos pelo governo de Getúlio Vargas, após a ANL (Aliança Nacional Libertadora), movimento que liderava, ter sido ser posta na ilegalidade.
O livro escrito às pressas foi uma tentativa fracassada de libertar o casal. Primeiramente, foi publicado em espanhol —os exemplares eram negociados clandestinamente no Brasi—, até que a edição foi proibida na Argentina e queimada por ordem do governo de Juan Perón. A primeira edição brasileira saiu em 1945, com o título "O Cavaleiro da Esperança", reeditado pela Companhia das Letras.
O que apenas pouquíssimas pessoas sabem é que na mesma época o autor baiano escreveu um romance introspectivo com 76 páginas e deixou o trabalho aos cuidados de uma companheira de ideologia no Uruguai, para evitar uma possível prisão no retorno ao Brasil por causa do conteúdo, considerado altamente revolucionário.
"Agonia da Noite ou São Jorge de Ilhéus" narra as 12 horas de vida de doze personagens. O enredo fala da espera por um sinal de luta para iniciar um levante comunista. O cenário, uma sala e um rádio e o temporal que não dá trégua.
A ação se passa na cidade de Estância, em Sergipe, terra natal de Alina Paim, escritora feminista e militante do PCB que dedicou sua principal obra, "Estrada da Liberdade", ao amigo Jorge Amado.
Na obra incompleta de Jorge Amado, não há um personagem principal. O texto intimista descreve anseios, sentimentos e esperanças dos homens e mulheres:
"Quanto tempo estivera parado em frente à porta, irresoluto? Ele mesmo não sabia... Poderia ter sido um minuto, poderia ter sido uma hora. Porém, fosse um minuto ou uma hora, a verdade é que não fora tempo suficiente para que se decidisse. Sabia apenas que a chuva o molhara todo, que suas mãos pingavam e que, quando Lopes abrira a porta ele ainda não tomara uma decisão."
O livro é apenas uma pequena parte do acervo deixado por Jorge Amado. A obra integra o conteúdo de uma mala com 1.400 mil documentos, guardados por três mulheres desde 1942: Rosa, Leonor e Tânia.
Rosa
Rosa é um codinome dado em homenagem a Rosa de Luxemburgo, comunista e revolucionária alemã assassinada em Berlim por paramilitares de direita em 1919. A Rosa-sem nome era uma judia polonesa, que vivia em Porto Alegre com o marido Isaac Scliar e as filhas, Esther e Leonor.
Ferrenha ativista do comunismo, Rosa foi deportada com a família pelo governo brasileiro para o Uruguai em 1929. Dois anos depois, os Scliar voltaram para o Brasil —foram morar em Livramento, na fronteira gaúcha.
Rosa abandonou a família para seguir um amante que conhecera no Uruguai e a causa vermelha. Esther tinha cinco anos; Leonor, dois.
Ainda no Uruguai, ela foi visitada pelo camarada Jorge Amado, que, segundo ela, estava ansioso para voltar ao Brasil, mas temeroso de ser preso. Deixou com ela a mala com seus documentos, que comprovam o trabalho partidário.
As filhas de Rosa cresceram em Porto Alegre. Esther, como a mãe, se tornou militante ativa, filiada à Juventude Comunista do PCB. Foi uma grande pianista e compositora e, aos 51 anos, se suicidou. Leonor virou poeta e acadêmica de Letras.
Leonor e Tânia
Após muitos anos, Rosa procurou a filha Leonor Scliar-Cabral em busca de reconciliação. Contou sobre a atividade comunista e entregou uma mala, deixada aos seus cuidados em 1942 por Amado.
Leonor guardou em segredo o vasto material até os seus 82 anos. Em 2011, entregou seu tesouro à professora Tânia Regina Oliveira Ramos, que leciona na universidade federal catarinense.
"Para ela não importava o Jorge Amado. Os documentos são a memória afetiva da mãe. Tanto que ela me pediu: 'Se algum trabalho acadêmico for publicado, gostaria que fosse dedicado à minha mãe'", conta Tânia.
Desejo cumprido pelas dissertações de mestrado de Roberta de Fátima Martins e Thalita Coelho, ambas orientadas por Tânia.
Paixão Comunista
Jorge Amado começou a escrever "Agonia da Noite/São Jorge de Ilhéus" no auge do fascínio pelo comunismo. Em 1939, o jornal literário carioca "Dom Casmurro" prometia o lançamento em breve. O que nunca ocorreu.
Tânia acredita que o autor tenha tentado finalizar a obra durante o exílio, mas se desmotivou. Com a matança e a exploração dos trabalhadores promovida por Joseph Stálin, na União Soviética, ele teria se desiludido com a ideologia comunista e nunca quis rever os documentos da mala.
Desde o seu primeiro livro, "O País do Carnaval", escrito aos 18 anos, Jorge Amado cortejou o ativismo comunista, refletindo as inquietações da sua geração na busca por um sentido que acabou sendo fornecido pela ideologia política, alicerçada na crença de um mundo mais justo.
Acusado de ter participado da chamada Intentona Comunista, o movimento criado por Prestes, Amado chegou a passar dois meses na cadeia no Rio de Janeiro.
Cacau, sua segunda obra, foi um livro panfletário e a edição foi imediatamente apreendida pela polícia. O escândalo virou sucesso, a edição se esgotou em um mês e foi traduzida em dez idiomas.
O quarto livro de Amado, "Jubiabá", o transformou num escritor admirado internacionalmente. Por isso, correu longe a notícia da sua prisão.
Capitães de Areia, de 1937, tem narrativa fortemente socialista. Pedro Bala, líder dos meninos órfãos pelas ruas de Salvador, é preso, foge, mete-se em greves de estivadores, até que se converte em militante proletário. O livro foi publicado após a implantação do Estado Novo, apreendido e teve exemplares queimados em praça pública. Nesse ano, o autor foi preso novamente por subversão.
Pesquisa
Aos 29 anos, aclamado pela crítica, odiado pela direita e autor de sete livros, Jorge Amado partiu então para o exílio na tentativa de libertar Prestes e sua companheira e o transformar em um herói latino-americano —pela biografia que se propunha escrever.
Entretanto, o romance não foi publicado a tempo e Jorge Amado foi novamente preso ao voltar para o Brasil —mas sem a mala, que comprovaria vastamente sua atividade comunista. Sem provas, foi solto com a ordem de se apresentar semanalmente no Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) em Salvador.
Com a legalidade do PCB após a queda de Getúlio Vargas, em 1945, o escritor concorreu e venceu as eleições para deputado federal por São Paulo. Seu mandato, no entanto, foi cassado como consequência da aliança do Brasil com os Estados Unidos.
Resolveu se refugiar no exterior. Primeiro em Paris, depois na então Tchecoslováquia, quando escreveu um relato de viagens pelas regiões da União Soviética que percorreu para mostrar a febril atividade dos povos para reparar os danos causados pela guerra.
Exaltou o esforço pela implantação do socialismo, bem como a política em prol da paz mundial. A obra, no entanto, trouxe amargura, por causa de sua decepção com a política de Stálin na URSS.
Acervo em risco
A professora Tânia guardou segredo sobre os arquivos de Amado durante anos —temia perder seu tesouro.
O Comitê de Direito Autoral da Universidade Federal de Santa Catarina dizia que a posse do acervo era ilegal, e que ela deveria entregá-lo. Isso em pleno centenário de Jorge Amado, em 2012.
Tânia teve que batalhar sozinha pelo conteúdo da pasta. Descobriu através do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e dos cinco maiores especialistas nas obras do baiano que não estava fazendo nada errado.
Finalmente, em 2014, teve coragem e entrou em contato com Myriam Fraga, então diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, vice-presidente da Academia Baiana de Letras, que morreu em fevereiro deste ano.
"Fui tratada como extrema gentileza. A Myriam mostrou uma gratidão pelo acervo estar aos cuidados de uma pesquisadora e protegido na universidade", disse Tânia, que foi convidada para palestra na fundação em agosto do ano passado.
Tânia foi acompanhada de Thalita Coelho, que catalogou e descreveu os 1.400 documentos para dissertação do seu mestrado "Entre Esparsos e Inéditos: a Mala de Jorge Amado", e Ailê Gonçalves, que apresentou como trabalho de conclusão da graduação "O (In)visível no Acervo Jorge Amado".
Sem os fantasmas, Tânia se sentiu à vontade para comentar em sala de aula sobre o presente que recebeu de Leonor Scliar-Cabral. Assim, o jornalista Emerson Gasperin, seu aluno de pós-graduação, ficou sabendo do acervo e publicou sobre a descoberta do livro inédito num jornal de Santa Catarina, na semana passada, dando nova vida à obra.
Jorge Amado escreveu, em sua autobiografia "Navegação de Cabotagem", que os segredos do partido morreriam com ele. A profecia não será mais possível.
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