Em novo livro, Salman Rushdie conta sobre anos miseráveis vividos sob constante proteção
Salman Rushdie mora na minha vizinhança, e para quem tem a cabeça a prêmio por US$ 3,3 milhões, não parece preocupado. Caminha pelas praças, vai à feira e, há pouco tempo, estava na mesa ao lado, num restaurante, com uma mulher bonita, na segunda garrafa de vinho, animadão, mas ela parecia mais animada do que ele.
Desde setembro Rushdie deu sopa na imprensa norte-americana promovendo seu livro "Joseph Anton", o pseudônimo que usou durante os nove anos em que viveu enrustido, protegido pelo serviço de segurança inglês, comendo o pão que Satã amassou. O título é a combinação de dois escritores favoritos de Rushdie: Anton Chekov e Joseph Conrad. Foi criado por instrução dos agentes de segurança que vetaram outros nomes e passaram a chamá-lo de Joe. Ele detestava o apelido.
Cópia da autobiografia "Joseph Anton", de Salman Rushdie
Salman Rushdie publicou seu livro "Versos Satânicos" no dia 26 de setembro. Nove dias depois foi banido na Índia, seu país de origem. E veio uma onda de livros banidos, protestos pacíficos e violentos, queima de livros, até na fina Londres, pelos muçulmanos.
No dia 14 de fevereiro, dia dos namorados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, veio o pior castigo. Estava em casa por volta de dez da noite quando uma jornalista telefonou e perguntou a ele como se sentia jurado de morte pelo líder do Irã. Rushdie respondeu que não era uma boa sensação. Logo que desligou foi conferir se a porta de entrada estava trancada e fechou as cortinas, como se isto segurasse um terrorista muçulmano.
O novo livro conta os anos miseráveis vividos sob constante proteção de quatro homens enormes --dois motoristas e dois seguranças-- e profundamente entediados pela missão. As equipes variavam, mas o tédio era comum. Nada acontecia na vida deles o que, essencialmente, era o objetivo final. Nenhum evento era a melhor notícia.
Numa visita raríssima a Nova York para falar na universidade Columbia, voou pela Royal Air Force, teve escolta de nove carros blindados cercados por batedores em motocicletas, dormiu numa suíte cara com 12 agentes e janelas cobertas por colchões à prova de bala. Mais de uma vez pensou se a morte não era melhor opção.
Vivia poucos dias ou temporadas em cada casa que ele mesmo era obrigado a encontrar, sempre com os agentes juntos, e cada saída para vez o filho Zafar exigia elaborada pré e pós produção. Ninguém brinca com fátuas de aiatolás, menos ainda se partisse de Komeini. Quando ainda era baixo clero, em 1947, lançou uma fátua contra um ministro da Educação iraniano. O ministro foi assassinado dias depois.
"Versos Satânicos" e a crise de identidade
A fátua de Komeini era abrangente. Não só contra o autor do livro como todos envolvidos. Poucas pessoas furiosas com o autor devem ter lido o livro. Os dois anteriores, "Midnight Children" e "Shame", são politicamente muito mais agressivos e fartos de deboches e insultos aos líderes políticos e religiosos indianos.
"Versos Satânicos" tem um capítulo de 40 páginas considerado ofensivo porque um personagem, à beira de uma crise psicótica, tem sonhos e pesadelos que envolvem Maomé. O profeta na montanha não soube distinguir entre um anjo e um demônio. "Versos Satânicos" é um livro sobre crise de identidade, a dele, saído de Bombaim por imposição de um pai alcoólatra e agressivo para estudar -- e detestar -- Oxford, na Inglaterra. O livro é sobre crise de identidade, conflitos entre vida e arte, realidade e imaginação, religião e ateísmo.
Salman Rushdie nunca foi ferido. Escreveu que a reação e as violências depois da publicação do livro foram prólogos para o 11 de setembro. Antes e depois do atentado às torres em Nova York muita gente sofreu e morreu por causa do livro. O tradutor japonês foi assassinado, o italiano foi esfaqueado, o editor norueguês levou três tiros em Oslo, na Noruega, mas sobreviveu.
O romancista egípcio Naguib Mahfouz, prêmio Nobel, assinou um manifesto de solidariedade a Rushie e levou uma facada quase fatal no pescoço. O tradutor turco era o alvo de atentado, mas a bomba explodiu antes da hora e matou o terrorista e outras 37 pessoas em Siva, na Turquia. Dezenas de bombas incendiárias foram lançadas em livrarias, editoras, casas de editores e outras pessoas associadas ao livro.
Numa entrevista em Nova York, em setembro, Salman Rushdie disse que ninguém hoje publicaria os "Versos Satânicos". A brutalidade dos muçulmanos radicais conseguiu intimidar o mundo editorial e político. Na Grã-Bretanha, o Religions Hatred Act, que propunha sete anos de prisão para quem insultasse qualquer religião, perdeu por apenas num voto no Parlamento.
"Nada mais sagrado do que o direito de questionar o direito de questionar", escreveu Rushdie, mas poucos ousam provocar os fundamentalistas. A escritora Sherry Jones escreveu "A Joia de Medina", um romance sentimental, inteiramente a favor sobre Aisha, mulher de Maomé. Foi comprado, pago e engavetado quando consultores disseram que era arriscado.
"Inocência dos Palestinos", o filme
Em 11 de setembro, quase no mesmo dia em que Rushdie falava sobre a intimidação muçulmana nas TVs norte-americanas, Nakoula Basseley, um egípcio copta residente na Califórnia, com um passado de fraudes e outros crimes menores, lançou seu filme "Inocência dos Palestinos". Péssima direção, roteiro absurdo, atores de terceira, em resumo, filme primário. Em 24 horas provocou demonstrações de protestos com mortes em dois países que se espalharam com violência e mais mortes para outros 24.
Da prisão na Califórnia, onde cumpre sentença por violar sua liberdade condicional, Basseley deu uma entrevista por escrito ao "The New York Times". Arrependimento? "Nenhum". Pelo contrário. Planeja lançar a versão longa de 1h40 de duração. A primeira foi apenas um trailer de dez minutos.
Os três filhos, a ex-mulher, parentes e pessoal envolvido com o filme estão, como Salman Rush, enfurnados no roteiro percorrido por Rushdie mas sem proteção do governo. O sofrimento da família não comove nem intimida o egípcio: "O islamismo é um câncer". Satã espreme a massa.
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