Em livro, americano retrata medo e conformismo na vida das favelas cariocas
Quando se mudou para o Rio, há cinco anos, o jornalista americano Douglas Mayhew foi trabalhar como voluntário na ala infantil do Hospital Municipal Miguel Couto. Uma vez por semana, distraía as crianças na sala de brinquedos.
A chegada de um menino com um tiro no braço, com uma ferida profunda de dias antes que já começava a cicatrizar, deixou claro que ele tinha apenas começado a conhecer a cidade.
"Me falaram que isso é comum no Rio e que eu tinha que me acostumar. Mas isso não é algo a que se possa acostumar", diz Mayhew, engasgado ao lembrar o episódio.
O choque de ver que a ameaça àquela criança vinha de sua própria comunidade o impeliu a ir conhecer, e entender, as favelas cariocas.
"Não conseguia imaginar um lugar em que a vida de uma criança era ameaçada não apenas por doença, ou por acidentes, mas pelo próprio ambiente e pessoas ao seu redor. Elas eram o perigo. Eu não podia acreditar. Então programei uma visita à Rocinha", diz Mayhew, que antes de se mudar para o Brasil tivera uma longa carreira dirigindo uma galeria de arte em Nova York.
Assim começou a incursão que o levaria a 70 comunidades do Rio ao longo de três anos, e resultaria no livro Inside the favelas: Rio de Janeiro (Por dentro das favelas: Rio de Janeiro), a ser lançado na cidade nesta quinta-feira durante a feira de artes ArtRio, e no dia 12 de outubro em Nova York.
O livro traz uma longa reportagem e um extenso ensaio fotográfico. O anonimato e a não identificação era a condição imposta por traficantes ou por milicianos.
Imersão e riscos
Todas as visitas foram feitas com o guia Marcelo Castro, dono de uma empresa de turismo de aventura, que virou um grande amigo e se revelou hábil negociador em momentos tensos com traficantes, diz Mayhew, que fala português bem, mas não o suficiente para sair das situações em que se viram envolvidos.
Ele conta que os dois foram revistados com frequência, por vezes até a roupa de baixo, e chegaram a ser levados para o mato e ameaçados de morte sob a mira de fuzis. "A gente sempre pedia autorização para entrar nas favelas, mas o problema é que às vezes a mensagem não se espalhava por todo o território."
Os momentos de aperto e as ameaças sofridas não estão no relato de Mayhew. A introdução do livro é o único trecho na primeira pessoa. Ele escolheu não tematizar suas próprias dificuldades e ater-se à realidade que viu e estudou.
"Começamos a sair por toda a parte uma ou duas vezes por semana e temos feito isso desde então, tirando fotos, entrevistando moradores, traficantes, milícias, policiais, crianças, avós. Ouvindo histórias. Mas quando digo 'entrevistar', isso depende muito do quanto as pessoas querem te dizer."
A dupla costuma voltar três ou quatro vezes para as mesmas comunidades. "Aos poucos, as pessoas começam a se abrir. Mas o código de silêncio que opera na maioria dessas comunidades é muito intenso. E continua a operar mesmo depois que as UPPs são instaladas, embora comece a diminuir", diz.
O texto de Mayhew fala sobre a expansão das favelas e o controle estabelecido sobre facções criminosas; o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e as mudanças trazidas com a expulsão do tráfico armado; a corrupção policial e a expansão dos territórios controlados pelas milícias; e os benefícios e problemas das UPPs, com a migração de criminosos para outras comunidades mais afastadas do centro do Rio.
O livro tem prefácio do governador Sérgio Cabral e é dedicado aos moradores das comunidades visitadas - como Cerro-Corá, Morro do Fogueteiro, Rio das Pedras, Morro do Tuiuti, Vila Cruzeiro, Borel, Tabajaras, Jardim Batan, Chácara do Céu.
Desconfiança e arquitetura
Mayhew conta ter enfrentado desconfiança não só de traficantes, mas também dos moradores por onde passava.
"Eu falo que sou um jornalista americano escrevendo um livro sobre a arquitetura das favelas, que era o meu objetivo inicial. As pessoas respondem incrédulas e rebatem com uma série de perguntas. A mais dura de ouvir é: 'você está aqui para tirar a minha casa?' É muito triste ver como as pessoas vivem aterrorizadas pela perspectiva de remoções."
A ambição de seu livro é quebrar paradigmas e desafiar a maneira rotineira como as favelas cariocas são vistas. "Acho que gerar diálogo sobre o assunto é o caminho para ajudar os cidadãos que mais precisam", diz.
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