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Zé Celso Martinez, 60 anos de teatro e a 'insurreição no corpo'

José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo e diretor do Teatro Oficina - José Antonio Teixeira/Assembleia Legislativa de São Paulo
José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo e diretor do Teatro Oficina Imagem: José Antonio Teixeira/Assembleia Legislativa de São Paulo

Rio de Janeiro

28/11/2019 09h27

Vestido de branco, ele cruza o palco com os braços para o alto, jubilante com o espetáculo que sua trupe vai apresentar: Zé Celso Martinez, figura histórica do teatro brasileiro, ainda acredita, aos 82 anos, na insurreição.

Ele, que fundou há 61 anos o Teatro Oficina, icônica companhia da contracultura dos anos sombrios da ditadura militar (1964-1985), mantém o rumo, apesar dos anos. Assim como sua trupe, resiliente mesmo após atravessar muitas tempestades.

Para apresentar no Rio de Janeiro "Roda Viva", escrito em 1968 por então jovem Chico Buarque, onde dança, música, teatro e vídeos se misturam, os mais de 60 artistas tiveram que encontrar um ônibus para transportá-los gratuitamente de sua base em São Paulo, assim como amigos para hospedá-los, além de recorrer ao público através de um crowdfunding.

Desde o início "tivemos mil problemas, mas o que importa é resistir", diz José Celso Martinez Corrêa, em entrevista à AFP.

"Eu tenho a insurreição no meu corpo", garante.

Em 1968, a "milícia do Comando de Caça aos Comunistas assistiu 70 vezes a peça para fazer uma operação contra 'Roda Viva', e eles invadiram o teatro, destruíram tudo o que puderam e foram aos camarins bater nas mulheres", recorda o diretor.

Hoje, "não temos apoio nenhum (do governo), nossa situação financeira é precária (...) e são quase 40 anos de luta" contra um projeto imobiliário.

Silvio Santos, dono da rede SBT, ameaça sufocar com grandes edifícios o local protegido e ocupado pelo teatro, no mítico espaço da arquiteta Lina Bo Bardi, no bairro do Bixiga, em São Paulo.

"Eu tenho 82 anos, fui torturado na ditadura militar" e depois exilado, explica Zé Celso, "mas o que estamos experimentando atualmente é muito pior: nunca vi tanta ignorância e ódio".

O Teatro Oficina tem sido, porém, poupado até agora da censura e pressões que se abate sobre a cultura desde que o governo de Jair Bolsonaro chegou ao poder em janeiro. "Roda Viva" esteve em cartaz por quase um ano em São Paulo.

- Bolsonaro hitleriano -"Em compensação (a Bolsonaro), a cultura está muito forte", diz Zé Celso, "os teatros estão lotados, os artistas vibrando. Toda a cultura está inssurrecta no Brasil!".

Começando com "Roda Viva", uma tragicomédia burlesca, anarquista, ácida e sarcástica, que conta num ritmo frenético as aventuras do popular cantor Benedito Silva, acompanhado por um "anjo da guarda" que rouba 20% de seus lucros.

Benedito se torna Ben Silver, um herói pop, antes de se metamorfosiar em Benedito Lampião, sob o ditame do show business.

Totalmente enraizada na atualidade política, a versão "Roda Viva" 2019 denuncia ferozmente um Bolsonaro com penteado e bigode hitleriano, que declara seu amor a Donald Trump, e cujas aparições em grandes telas provocam as vaias do público.

Um público que, incentivado pelos artistas, às vezes de forma insistente, é convidado a participar ou aplaudir o ex-presidente Lula.

Os dançarinos escalam as fileiras de assentos, o excêntrico Zé Celso se deita sobre os joelhos de três espectadores. E, no final, artistas e espectadores dançam juntos no palco.

Para Zé Celso "tudo é sexual" e as cenas de estupro ou orgia são explícitas. São atores totalmente nus que às vezes vagam entre os espectadores.

- Farsa amarga -Tudo serve de pano de fundo: os incêndios na Amazônia, as suspeitas de corrupção de Flávio Bolsonaro, filho do presidente, os mantras de seu "guru" Olavo de Carvalho, a invasão de terras indígenas, os sermões de evangélicos histéricos.

A liberalização do porte de armas é uma farsa amarga, a TV Globo e a TV Record que fazem lavagem cerebral ou a ministra da Agricultura Tereza Cristina, que pulveriza o público de "pesticida", são temas cobertos pelo ridículo.

Os artistas retomam a retórica bolsonarista: "120% do mundo fala bem do Brasil" ou "os incêndios na Amazônia fazem parte da cultura".

"A charge política da peça é muito forte", diz Zé Celso, que refuta qualquer maniqueísmo.

"Eu boto fé na força humana que vai se mobilizar, e começar a aparecer nas ruas, tenho a impressão que está próximo", disse no final da entrevista.

Após esta previsão, ele se levanta sem aviso prévio e lança com entusiasmo: "Merda!"

A peça vai começar.