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Como o exército soviético quase lutou contra dublês de um filme na Guerra Fria

Cena do filme "A Ponte de Remagen" - Divulgação
Cena do filme "A Ponte de Remagen" Imagem: Divulgação

Da AFP, em Davle (República Tcheca)

20/08/2018 09h19

Graças à propaganda, os soldados soviéticos que invadiram em 1968 a Tchecoslováquia esperavam ter que enfrentar "imperialistas" americanos e alemães ocidentais, mas, na falta desses últimos, faltou pouco para que não travassem uma batalha contra figurantes de cinema.

"Lembro do barulho de uma coluna de tanques, em 21 de agosto de 1968. Logo os soviéticos chegaram ao centro de Davle e foi ali onde cruzaram, para sua imensa surpresa, com quem tomaram como alemães", conta uma mulher aposentada.

Como muitos outros habitantes de Davle, pitoresco povoado do Vale de Vlatava, não muito longe de Praga, Kvetoslava Dufkova, com 14 anos na época, participava como figurante na gravação do filme de guerra americano "A Ponte de Remagen", de John Guillermin.

"Esses homens dos tanques ficaram perplexos aos ver, de frente para eles, um 'exército alemão'. Começaram a negociar e assim fizeram durante várias horas", diz Kvetoslava, lembrando perfeitamente dos fatos que poderiam ter acabado em uma tragédia, há 50 anos.

Após passar um bom tempo, os intrusos não entenderam que estavam cara a cara com uma equipe de filmagem e não com supostos bandidos "imperialistas".

Ponte - AFP - AFP
A ponte sobre o rio Sazava, em Davle, que foi usada nas filmagens de "A Ponte de Remagen"
Imagem: AFP

A vida em um planalto

Desde março desse ano, Davle vivia um ritmo de filmagem, com seus habitantes cruzando diariamente com estrelas de Hollywood como George Segal e Robert Vaughn, de uniforme americano ou nazista, junto a tanques e outros veículos militares, entre outros detalhes que imitavam a cidade de Renânia-Palatinado.

"Próximo de nossa casa havia um montão de manequins de soldados mortos que os cineastas espalhavam aqui e ali durante a filmagem", conta outro local, Antonin Dvroak, de 78 anos.

O filme falava da conquista, em março de 1945, de uma última ponte intacta sobre o Reno pelo exército americano antes que a Wehrmacht (as forças armadas da Alemanha) o destruísse.

Graças à mudança de postura política que abriu a Tchecoslováquia para o Ocidente, a empresa United Artist pode aproveitar uma ponte metálica idêntica à da cidade de Remagen, mas em Davle, e também o talento de dublês e outros especialistas locais.

Entre os cerca de 800 figurantes, também havia estudantes de Davle, usando os uniformes da Hitlerjugend ("Juventude Hitlerista"), segundo uma crônica do povoado escrita à mão que a prefeitura guarda como uma relíquia.

Soldados assustados

A encenação era tão bem feita que poderia ter causado um drama no dia da invasão do exército soviético e de outros quatro países do Pacto de Varsóvia, que deixou cerca de 50 mortos em todo o país nas primeiras 24 horas e que acabou brutalmente com as reformas liberais da "Primavera de Praga".

"A chegada dos soviéticos a Davle foi horrível. Um helicóptero voava acima de nossas cabeças. Os soldados estavam terrivelmente assustados, podia ter acontecido uma tragédia", disse Dvorak. "Alguém disse que Davle foi invadida pelo exército americano e que deviam nos liberar. Não entendiam em absoluto porque as pessoas mostravam seus punhos. Estavam muito nervosos, a tensão era palpável durante um bom tempo", conta.

A filmagem de "A Ponte de Remagen" foi interrompida e toda a equipe do filme foi rapidamente para o Ocidente de taxi, deixando provisoriamente no local todos os tanques Shermans e Tigers.

No outono, os cineastas conseguiram a permissão para voltar por pouco tempo para Tchecoslováquia para gravar algumas cenas e o filme foi terminado na Alemanha Ocidental e na Itália. A estreia aconteceu nos Estados Unidos em 1969.

Apesar disso, o planalto de Davle não ficou deserto: a equipe de John Guillermin foi rapidamente substituída por zelosos cineastas de Moscou, com o objetivo de apresentar ao público soviético as imagens dos tanques americanos e nazistas a apenas 20 km de Praga e justificar, assim, a invasão soviética.