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De Sarajevo a Belgrado, divididos por uma língua sem nome

05/05/2017 14h58

Sarajevo, 5 Mai 2017 (AFP) - "Pusenje ubija", "Fumar mata". Na Bósnia, os viciados em nicotina são avisados três vezes: em sérvio, croata e bósnio, uma separação linguística que muitos consideram artificial, ditada pelo desejo de incentivar o nacionalismo.

Intelectuais croatas, bósnios, sérvios e montenegrinos lançaram recentemente, em Sarajevo, um manifesto para afirmar que falam "uma língua comum".

"Está claro como água", diz à AFP Fedja Isovic, roteirista bósnio.

"Somente as hordas linguísticas nacionalistas pensam o contrário", acrescenta o autor de uma série popular nos quatro países, "Lud, zbunjen, normalan" ("Louco, confuso, normal").

Essa posição faz que, por vezes, sejam acusados de serem traidores de suas respectivas nações, nascidas da sangrenta desintegração da antiga Iugoslávia na década de 1990.

Para os 8.000 signatários do manifesto, de Sarajevo a Podgorica, passando por Belgrado e Zagreb, 15 milhões de pessoas usam o mesmo idioma: uma língua regulada nos séculos XIX e XX, atualmente sem nome, conhecida na era iugoslava como servo-croata e escrita, respectivamente, em letras romanas (croata e bósnio) e cirílicas (sérvia e montenegro).

Quando vivem no exterior, os cidadãos desses países "se referem à 'nossa língua'", comenta a romancista croata Slavenka Drakulic.

O manifesto de Sarajevo denuncia o purismo linguístico e suas consequências, tais como a separação, nas escolas dessas antigas repúblicas iugoslavas, das crianças em função de sua origem, sob o pretexto de que elas não falam a mesma língua.

Na Bósnia, sociedade marcada pelos 100 mil mortos da guerra (1992-1995), existem 30 estabelecimentos nos setores onde perdura certa diversidade étnica.

Política e ridículoDesde o desmembramento da Iugoslávia, as elites nacionalistas não pararam de aumentar a divisão linguística.

Independentes da Sérvia desde 2006, os montenegrinos acrescentaram duas letras ao alfabeto.

As autoridades bósnias transmitem seus comunicados em três versões, muitas vezes estritamente idênticas, expondo-se ao ridículo.

Na Sérvia, região de maioria bósnio-muçulmana de Sandzak (sudoeste), um tribunal teve de contratar tradutores em 2015, porque alguns detentos diziam não compreender o sérvio.

Na Croácia, desde a independência, o aeroporto não é mais um "aerodrom", mas um "zracna luka" (porto aéreo), enquanto um porta-voz é um "glasnogovornik" (literalmente um alto-falante), e não mais um "portparol".

A tentativa de transformar a "televizija" (televisão) em "dalekovidnica" ("clarividência") não teve sucesso. Neste país, até certo tempo, os filmes sérvios eram legendados, até que o riso da plateia terminou com a prática.

São posturas "ridículas", estima a linguista croata Snjezana Kordic, que descreve "uma língua padrão policêntrica, falada por vários povos" com "diferenças que permitem reconhecer a origem de quem fala".

Em alguns casos, a questão é tratada com ironia. Em 2014, durante várias manifestações na Bósnia, país multiétnico, surgiu um lema nas manifestações: "Gladni smo na sva tri jezika!" (Temos fome em três idiomas!). Um slogan que até recentemente ainda podia ser visto em um muro no centro de Belgrado.

Apátridas e parasitasEm um contexto de tensões crescentes nos Bálcãs ocidentais, o manifesto de Sarajevo não agrada a todos.

"Este suposto idioma comum era um projeto político que morreu com a antiga Iugoslávia", afirma a presidente croata, Kolinda Grabar Kitarovic.

"Contudo, vimos como nos entendíamos muito bem nessa língua comum com (o primeiro-ministro sérvio) Aleksandar Vucic e outros políticos da região", ironiza o escritor croata Ante Tomic.

Igor Sever, croata de 28 anos, diz compreender "obviamente" os sérvios e os bósnios quando falam.

"Mas chamo de croata o meu idioma e não vejo razão para questionarem isso, ou me tacharem de nacionalista", acrescenta.

Pertencente ao núcleo central dos autores do manifesto, a croata Snjezana Kordic foi alvo, junto com outros signatários, de uma violenta campanha da imprensa em seu país.

Em um artigo, o escritor Davor Velnic chamou os signatários de "iugointelectuais", "apátridas" e "parasitas" que "nunca admitiram a existência de um Estado croata reconhecido internacionalmente".

Na Sérvia, o conceito de "língua comum" parece ser mais bem aceito. Milos Kovacevic, da União Literária Sérvia, acrescenta, porém, um comentário potencialmente incendiário: "Se não damos nome a essa língua, é porque todo mundo sabe que essa língua é sérvia".

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