Topo

Fortes emoções no Rock in Rio: Who arrebatador, Guns N' Roses constrangedor

Alexandre Matias

Colaboração para o UOL, no Rio

24/09/2017 13h05

O segundo sábado da edição deste ano do Rock in Rio foi sem dúvida seu dia mais marcante. Além de receber um de seus maiores públicos, o evento também assistiu dois espetáculos de diferentes grandezas e resultados extremos: duas bandas que viveram seu auge décadas atrás entregando-se totalmente em longas sequências de clássicos de seu gênero, com empatia instantânea com a audiência. O pequeno porém diz respeito apenas ao fato dos decanos do Who, completando mais meio século em atividade sem aparentar tal idade, ter feito o melhor show da edição do festival e que os Guns N' Roses, liderados por uma versão catastrófica de Axl Rose, proporcionaram uma constrangedora sessão de tortura em uma das piores apresentações do evento.

Antes de chegarmos no Palco Mundo, no entanto, vale ressaltar duas grandes apresentações ocorridas no segundo palco do festival, o Sunset. Os colombianos Bomba Estéreo foram sagazes ao perceber que estavam pisando em terreno desconhecido - e com a maior quantidade de camisas pretas do festival - e em vez de atacarem de assalto o público com sua máquina de suingue latino, optaram por cozinhar seu groove lentamente, hipnotizando a plateia roqueira que aos poucos ia cedendo ao rebolado. O aperto no ritmo também coincidiu com a deixa para a entrada de sua convidada, a rapper curitibana Karol Conká, que tinha parte do público na palma da mão e conquistou facilmente a outra. Seus hits “Tombei” e “É o Poder” foram entoados a plenos pulmões pela pequena multidão que arriscou assistir ao encontro.

Logo depois foi a ver do irresistível Ceelo Green conduzir a plateia como o sensacional maestro soul que é. Armado de um carisma monstruoso, de um gogó impecável e de uma banda em ponto de bala, ele fisgou o público pelos quadris e todo mundo foi arrastado ao enorme bailão em que o Sunset foi transformado. Apelando pesado ao escolher versões de hits de diferentes épocas mas igualmente incendiários (a paulada “It’s Just Begun” do Jimmy Castor Bunch, a contagiante “Boogie Oogie Oogie” do grupo disco A Taste of Honey e a grundenta “Dontcha” das Pussycat Dolls, entre outras), ele fez um dos melhores shows da noite e de todo o festival. E, como a plateia, também não acreditou na presença de palco da brasileira Iza, que manteve-se o tempo todo à altura quando esteve ao lado do soulman. E além dos hits inevitáveis (tinha que ter “Crazy” e “Fuck You”, afinal), Ceelo ainda apelou para o funk carioca, quando seu saxofonista engrenou a melodia do hit “Deu Onda” (é, “aquele” do MC G15), que foi a deixa para a entrada do coletivo de percussão de Salvador Quabales, que, ao lado de Ceelo e Iza, encerraram a noite numa versão memorável para “September”, do Earth Wind & Fire.

De volta ao palco principal, duas bandas apresentarem-se antes do The Who apenas para serem dizimados da memorável pelo grupo inglês - os Titãs e o grupo Incubus até empolgaram o público, mas desapareceram no momento em que Pete Townshend iniciou o show de sua banda ao brada uma sequência de “fuck” berrados ao microfone antes de entrar em “I Can’t Explain” e levar a Cidade do Rock a uma montanha russa emocional.

Difícil explicar. Donos de hits globais pouco conhecidos pelo público brasileiro, o grupo liderado por Pete e pelo vocalista Roger Daltrey não é uma banda de rock clássico à toa. Contemporâneo e conterrâneo dos Beatles, dos Stones, dos Yardbirds, dos Animals e dos Kinks, o Who tem uma das biografias mais ímpares de sua geração e uma discografia igualmente invejável. E mesmo que os brasileiros não os reconheçam como tal, os reconhecem por suas canções: hinos como “Baba O’Riley”, “You Better You Bet”, “Won’t Get Fooled Again”, “My Generation”, “Behind Blue Eyes” e “Substitute” já ultrapassaram a autoria da banda e podem ser reconhecidos graças a versões de outros artistas e trilhas sonoras de filmes e seriados. Pode ser que a maior parte do público tivesse ido ao festival assistir aos Guns N' Roses, mas era evidente que todos conheciam a maior parte do repertório tocado naquele show, mesmo que não soubesse quem era o Who.

O mais impressionante é a vitalidade e energia da dupla remanescente da formação original. Com mais de setenta anos de idade, os dois não demonstram cansaço nem o peso da idade, especialmente pelo fato de Roger Daltrey ter conseguido readaptar os clássicos da banda a seu timbre geriátrico. Desta forma, deixa de lado as acrobacias vocais do passado influenciadas pela soul music para tornar-se um vocalista de rock igualmente agressivo e melódico, dando-se ao luxo inclusive de atingir notas mais altas ou segurar gritos por mais tempo em momentos específicos da noite, o que aumentava ainda mais o brilho de sua apresentação.

Pete Townshend, por sua vez, só aparenta a idade que tem. Segue o mesmo guitarrista imponente que fez história no rock, um guitar hero improvável, um grandalhão nerd desengonçado de timbre vocal magro que compensava sua inaptidão social transformando seu instrumento em uma arma de fogo. Trocando suas Fenders Stratocaster pelo decorrer do show, ele empurrava riffs com precisão jazzística e desembainhava solos como se expusesse uma coleção de armas brancas. Juntos, os dois eram apenas metade do espetáculo original do Who (ao lado dos falecidos John Entwistle, um rochedo em forma de baixista, e de Keith Moon, o baterista de rock clássico definitivo), mas cinquenta anos depois conseguem manter intacta a essência do passado trocando olhares e vocais, acompanhando um ao outro e descrevendo fisicamente arcos épicos de eletricidade característico das introduções instrumentais da banda: Pete rodando o braço como hélice sobre a guitarra em seu gesto mais emblemático enquanto Roger atira o microfone para todos os lados, dançando com o cabo do aparelho. Um show insuperável e de tirar o fôlego.

Os mesmos adjetivos podem ser aplicados ao circo de horrores liderado por Axl Rose. Difícil alguém realizar um show mais constrangedor do que aquele que encerrou a noite de ontem no festival - e a falta de fôlego neste caso é vizinha da falta de disposição. É triste ver o que esta banda se tornou - ou melhor dizendo, no que Axl Rose se tornou. Antes um dos rockstars mais representativos de toda uma escola do rock (a do glam metal dos anos 80), ele se tornou não apenas uma caricatura de si mesmo, mas uma vítima de sua própria megalomania. Sua aparência deformada só não é mais perturbadora que sua voz, um frangalho execrável cujo parentesco vocal mais próximo é o da personagem da Velha Surda, do programa A Praça é Nossa. 

Axl preferiu expor ao público a cicatriz que sua vida artística se tornou. E por mais que seus fiéis escudeiros - ou melhor dizendo, bons amigos - Slash e Duff McKagan se esforcem para manter um mínimo de decência na apresentação, acabam soando como encheção de linguiça quando o show já embicava pela segunda hora de duração (quem quer ouvir uma versão instrumental de “Wish You Were Here” do Pink Floyd num show do Guns N' Roses?). Axl Rose em 2017 é uma versão tão grotesca da decadência de um astro do rock que faz o Elvis Presley de 1977 parecer um dândi. Fico imaginando qual a reação que o jovem Axl teria se pudesse vislumbrar seu futuro.

O show foi um longo calvário que parecia incluir todas as músicas que a banda já tocou na vida, uma maratona de paciência que exigiu até dos fãs mais ardorosos, já que muitos abandonaram o show da metade para o fim. Todos os hits estavam lá, até a rara “Don’t Cry”, essa bela canção, bem como as inúmeras versões para músicas alheias que fazem parte do repertório do grupo - embora seja uma espécie de crime artístico ouvir Axl Rose cantar “The Seeker” do Who e não a escutarmos com seus próprios autores. Na verdade, já é uma espécie de crime artístico colocar o Who para abrir para o Guns N Roses, os próprios integrantes do Guns devem saber.

Uma noite de fortes emoções, o segundo sábado do Rock in Rio foi a principal noite do festival até aqui, trazendo grandes momentos e lembranças esquecíveis na medida que se espera de um evento deste porte, mesmo com todo seu caráter corporativo.