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Tem até Pokémon no livro de histórias inspiradas em músicas de Noel Rosa

Rodrigo Casarin

01/06/2017 10h03

Um dos maiores músicos da história do país, Noel Rosa foi diretamente responsável pela popularização do samba. Apostando nas trocas culturais entre diferentes camadas da população do Rio de Janeiro do começo do século 20, criou canções imortais, como "Fita Amarela" e "Três Apitos", que se destacam tanto pela melodia quanto pela qualidade das letras. Partiu cedo, há oito décadas, quando tinha apenas 26 anos, mas deixou um impressionante legado.

Uma das recentes homenagens que marcam os 80 anos da morte do artista é "Conversas de Botequim" (Mórula Editorial), livro que apresenta 20 contos inspirados por músicas de Noel e assinados por um time de escritores que traz um bom panorama de nossa atual literatura. Os organizadores do volume são os cariocas Henrique Rodrigues, autor de "O Próximo da Fila" (Record) e também responsável por obras semelhantes inspiradas em canções da Legião Urbana e dos Beatles, e Marcelo Moutinho, autor de títulos como "Na Dobra do Dia" (Rocco) e "Ferrugem" (Record).

"Noel revolucionou a lírica da canção brasileira ao abdicar dos arroubos linguísticos que na época distinguiam nossa música popular, apostando em dicção próxima à da coloquialidade. Para usar uma imagem, diria que ele tirou o fraque e a cartola da nossa letra de música", diz Moutinho sobre os aspectos que se aproximam da literatura na obra de Noel.

O organizador lembra do diálogo de "Conversas de Botequim" e da gagueira presente em "Gago Apaixonado" para falar de como a obra do músico é "original e absolutamente moderna, ecoando das transformações estéticas que aconteciam em outras esferas artísticas, como a da própria literatura. Sem falar na questão temática. Vale lembrar que Noel foi pioneiro ao falar da homossexualidade, no samba 'Mulato Bamba', de 1931".

Noel e o Pokémon

Na hora de convidar os escritores para participarem da coletânea, Rodrigues e Moutinho prezaram pela diversidade que existe na literatura brasileira contemporânea, reunindo gente de diferentes lugares do país, de diversas gerações e de propostas estéticas distintas. Dessa forma, estão no livro nomes como Ana Paula Lisboa, Veronica Stigger, Cíntia Moscovich, Socorro Acioli, Flávio Izhaki, Sergio Leo, Ivana Arruda Leite, Rafael Gallo, Maria Esther Maciel e Marcelino Freire. Coube a cada um escolher sobre qual música gostaria de criar e o resultado são peças literárias para canções famosas, como "Feitio de Oração" e "Último Desejo", mas também para músicas nem tão conhecidas assim – "Por Causa da Hora" e "Voltaste", por exemplo.

Dentre os contos que surpreendem, o que mais chama atenção é o de Luisa Geisler. Baseada na canção "Dama do Cabaré", a autora criou uma história na qual aparecem referências a aplicativos de celular e games como Final Fantasy e Pokémon Go. "Talvez a maior (e melhor) surpresa foi perceber que os contos não ficaram necessariamente alinhados à época em que as canções foram compostas. Que o diálogo se deu de forma absolutamente livre, muitas vezes com temas contemporâneos, distantes do tempo de Noel. O que talvez só reitere que o homenageado continua sendo um artista moderno 80 anos depois de sua morte", analisa Moutinho.

Além da relevância artística, o organizador ainda comenta que lembrarmos de Noel Rosa pode ser importante em nosso atual momento por conta de um outro aspecto de sua trajetória. "Um dos traços mais marcantes da vida e da obra de Noel é a capacidade de trânsito entre espaços geográficos e grupos sociais nem sempre próximos. Oriundo da classe média, ele frequentou o subúrbio e as favelas da cidade. Não com o objetivo de 'levar cultura', mas de aprender, de dialogar. Sua arte nasce justamente da interseção entre asfalto e morro, numa relação que nunca foi de solapamento. Pelo contrário: foi de troca. Num momento de tanta cisão política e social, falar da potência dos encontros talvez seja, mais que pertinente, quase revolucionário".

Ou seja, "Conversas de Botequim" reforça o diálogo entre música e literatura, entre o morro e o asfalto, entre as diferentes formas de cultura. O diálogo que tanto anda faltando por aí.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.