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Cannes: "Happy End", de Haneke, aborda suicídio, vício e perversão sexual

Cena do filme "Happy End", do diretor Michael Haneke - Divulgação
Cena do filme "Happy End", do diretor Michael Haneke Imagem: Divulgação

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Cannes

22/05/2017 08h50

O mínimo que se espera de um novo filme de Michael Haneke (de "Amor") é uma obra impactante – e com alguma margem para polêmica –, e ontem o cineasta austro-alemão não deixou a desejar em Cannes. Seu novo longa, "Happy End" (Final Feliz), exibido em competição, aborda diversos temas pesados, como imigração na Europa, suicídio, alcoolismo e perversões sexuais.

"Não sou tão malvado como dizem", disse o diretor, na conversa com a imprensa, arrancando risadas da plateia. O procedimento do filme apresentado ontem não é tão novo: falar da sociedade moderna por meio dos membros de uma família da alta burguesia. Os Laurent são ricos empresários do norte da França, mas a vida pessoal de cada membro da família esconde segredinhos nada compatíveis com a pose que o clã gosta de ostentar.

Como o filme se vale muito do suspense que cerca cada situação – e cada personagem –, melhor evitar muitos detalhes da intriga. Melhor dizer o que a breve sinopse oficial do longa descreve: "O mundo ao nosso redor, e nós no meio de tudo, cegos". Por mais genérica que seja a frase, ela diz mais sobre o filme do que qualquer descrição mais detalhada.

O filme gerou curiosidade já pelo título: com um cinema tão marcado pela violência (psicológica e física), será que, desta vez, Haneke estaria em uma fase menos agressiva? Mais uma vez, é o caso de não entrar muito em detalhes de trama, mas pode-se dizer que não é lá exatamente o caso.

Indagado sobre o sentido de seu filme, Haneke preferiu evitar explicações: "Eu mostro e, depois, é com o público de interpretar. Na escritura [do roteiro] e na direção, eu apenas trago os indícios para deixar o trabalho para a cabeça dos espectadores", disse, frustrando a expectativa de muitos.

Mas mais adiante, abriu a guarda e teceu alguns comentários. "O filme tem certa amargura, porque nós nos ocupamos só de nossas questões, de nós mesmos. Não é um problema especificamente francês, poderia se passar em qualquer lugar. Calais [cidade no norte da França] poderia ser qualquer lugar da Europa. O tema [do filme] é a nossa forma de viver", disse o diretor. "No mundo de hoje, somos inundados de informações, o que nos torna cada vez mais cegos. Antes, cada pessoa sabia apenas uma coisa, a própria profissão. Mas hoje, com a mídia, as pessoas pensam que estão informadas, mas sabem menos que antes, porque não vivem as situações", completou.

O elenco traz Isabelle Huppert, em sua quarta colaboração com o cineasta, e Jean-Louis Trintignant, que trabalhou com ele em "Amor". Sobre a repetição dos dois atores no elenco, Haneke comentou de forma direta: "Sou fiel: se alguém trabalha bem comigo, repito a experiência".

Huppert desenvolveu um pouco mais. "[Haneke] alterna filmes as vezes mais íntimos, como ‘Amour’, outros mais políticos, como ‘Happy End’, há uma grande variedade de temas", disse a atriz, dizendo o que a faz admirar a obra do cineasta. "Mas ele tem uma constância na forma de filmar, todo prazer que há em rodar com ele se mantem desde ‘A Professora de Piano’. Ele se interessa plenamente por quem está diante dele, pelo que ela é verdadeiramente, pela pessoa", disse

Haneke é um dos poucos diretores que já ganharam por duas vezes a Palma de Ouro em Cannes: por "A Fita Branca" (2009) e "Amor" (2012). Por isso mesmo, de antemão já deve imaginar que as chances de sair novamente com o prêmio principal são poucas – embora não inexistentes.

Seu novo filme tem tudo para irritar quem já não gosta de seu estilo – apesar dos prêmios do cineasta, seus detratores não são poucos. A prestigiada revista francesa "Cahiers du Cinéma", por exemplo, costuma classificar a obra de Haneke como "cinéma de salaud" (algo como "cinema de filho da mãe"). Isso porque, entre outras coisas, o alemão costuma atribuir a si próprio uma posição de colocar o espectador diante de grandes violências como que se dissesse ao público: "Estou fazendo para o seu bem". Sendo que, para quem rejeita seu estilo, há um elemento de fazer sucesso pelo choque e pela manipulação emocional muito maior do que pelas boas intenções de "abrir os olhos do público".

Haneke não faz questão de agradar em seus filmes – e nem também em suas aparições públicas. Não mostra nunca grande empolgação para responder as questões dos jornalistas, principalmente se abordam alguma questão mais polêmcia, como a questão da violência. Sobre o trecho mais truculento de "Happy End", saiu-se com essa. "Não quis fazer uma cena de violência espetacular, achei que aquela seria a forma adequada [de filmar]".

Seja como for, em "Happy End" é a prova viva de que o cineasta simplesmente não dá a mínima para críticas: faz o mesmo tipo de cinema em que acredita e que o tornou tão conhecido (e premiado). E sua confiança em si mesmo faz com que, inclusive, se dê ao luxo de fazer, desta vez, uma série de autorreferências – os fãs hão de perceber citações (algumas mais veladas, outras mais abertas) a suas obras anteriores, como "A Professora de Piano", "Cachê" e "Amor".

"São coisas da minha vida privada que me marcaram e senti o desejo de falar disso novamente. Podem ver como uma piscadela a minha própria obra, mas não foi a minha intenção", disse o cineasta, jogando a interpretação do que faz mais uma vez para o público.