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Harry Potter é espelho para o Brasil entender o buraco onde está se metendo

Rodrigo Casarin

24/11/2017 10h14

Órfão, Potter vê seus pais no espelho de Ojesed.

No começo do século, livros de "Harry Potter", saga de J. K. Rowling que ainda estava em seu quarto volume, eram banidos de escolas dos Emirados Árabes Unidos junto com quase três dezenas de títulos, dentre eles "Revolução dos Bichos", de George Orwell. Anos mais tarde seria a vez do Irã, país que proibiu livros de Paulo Coelho, demonstrar preocupação com as histórias do bruxinho.

E "Harry Potter" seguiu causando incômodo aqui e acolá: igrejas europeias se queixaram, o Vaticano resmungou alguma coisa (mas depois inocentou Harry, que definitivamente não mereceria ir para as chamas) e, nos Estados Unidos, grupos pediam para que a obra ficasse longe das crianças para que não as incentivasse a praticar feitiçarias. Surreal.

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Quando essas notícias chegavam no Brasil, a reação era sempre a mesma. A maior parte das pessoas ignorava. Fãs ficavam revoltados com os ataques ao bruxo e a Rowling. E quem discutia os acontecimentos, ridicularizava as paranoias coletivas ou estatais que viam em Potter uma ameaça ao futuro das crianças, um inimigo do Estado ou uma ferramenta para que qualquer bruxaria desbancasse as religiões dominantes pelo mundo. Fosse de esquerda, centro ou direita, não lembro de ninguém dizendo: "olha, deveríamos dar um chute na bunda desse cara, jogá-lo para fora do Brasil também". Provavelmente até existia gente lunática com esse discurso, mas não fazia sequer zunido.

No entanto, será que hoje muitos não encampariam alguma campanha contra Potter? Vamos ver. Podemos bradar contra a saga porque há cenas de violência e tortura que podem apavorar nossas crianças (a começar por um garoto que vive trancado pelos próprios tios em um armário). Porque há cenas de tensão sexual na série, algo completamente normal para adolescentes, mas que pais preferem fingir que não existe enquanto seus filhos já estão transando por aí. Porque há referências à magia negra, claro. Porque Dumbledore, o grande sábio, seria homossexual. Porque Potter e seus amigos tomam cerveja amanteigada em Hogsmeade, um claro incentivo ao alcoolismo infantil.

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As possibilidades são várias, ainda mais para quem olha para um livro de forma já enviesada, arbitrária. Não precisamos brigar com o livro de Rowling, em todo caso, já estamos elegendo outros Potters. Algo com uma pegada mais local, que deve permanecer longe das criancinhas – como vimos ontem, como estamos vendo nos últimos meses. Ontem ríamos, hoje estamos indo pro mesmo caminho de países como o Irã e os Emirados Árabes. Quando se olha no espelho de Ojesed, aquele que na saga revela o desejo mais profundo de cada um, o Brasil vê fogueiras.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.