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Ai Weiwei: Por que a China tentou calar seu artista mais famoso

O artista plástico chinês Ai Weiwei - Stefen Chow/Smithsonian magazine/Reuters/World Press Photo
O artista plástico chinês Ai Weiwei Imagem: Stefen Chow/Smithsonian magazine/Reuters/World Press Photo

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

19/10/2017 18h53

Em tempos de censura rondando as artes, talvez não exista maior autoridade no tema atualmente do que Ai Weiwei. O artista chinês que abre a 41ª Mostra Internacional de São Paulo com o documentário “Human Flow: Não Existe Lar se Não Há para onde Ir” (estreia no circuito comercial em 16/11) é um claro exemplo do risco que a arte corre quando política, moral ou religião tentam ditar o que pode ou não ser dito.

Durante quatro anos, entre abril de 2011 e julho de 2015, Weiwei, 60, teve sua liberdade limitada de alguma forma, entre 81 dias encarcerado, prisão domiciliar e proibições de viajar para o exterior, de deixar Pequim e mesmo de exibir seu trabalho na China. As acusações iniciais eram de sonegação de impostos, mas seus apoiadores interpretaram a prisão como uma retaliação do governo chinês pelas crescentes críticas de Weiwei ao regime.

E os casos recentes que aconteceram por aqui, de pressão contra museus e instituições que exibiram obras consideradas por alguns grupos como apologia à pedofilia ou homossexualidade, foram uma das razões que trouxeram Weiwei ao país.

"Começamos o filme há quase dois anos e estávamos ansiosos para mostrá-lo. Quando soubemos que a Mostra tinha aceitado exibir o filme, senti que era muito bom, porque este é um momento delicado aqui", disse ao UOL o artista, que é ferrenho defensor da liberdade de expressão.

Há pessoas tentando atacar a arte com censura, o que é sempre um problema sério.
Ai Weiwei

“Ninguém deveria poder dizer o que um indivíduo pode ou não ver”, acredita. “E não podemos nunca dar às autoridades o direito de limitar nossos próprios direitos. Claro que você pode decidir individualmente não ver algo. Mas que outra pessoa possa fazer isso é algo prejudicial à sociedade”.

Para ele, a única maneira de se posicionar contra a censura é se esforçar para que nossas vozes sejam ouvidas. “Liberdade sempre envolve uma luta. Liberdade significa termos direito de lutar e questionar. Se não temos esses direitos, se não exercitarmos esses direitos, não teremos liberdade. Então, acho que as pessoas deveriam tomar como um exercício cotidiano fazer que suas vozes sejam ouvidas”.

Weiwei - Frank Zeller/AFP Photo - Frank Zeller/AFP Photo
Ai Weiwei posa com seu filho, Ai Lao, em Berlim, em 2015
Imagem: Frank Zeller/AFP Photo

Processo

Calar a voz de Weiwei parecia ser exatamente o objetivo do governo chinês quando o prendeu. Todo o processo foi nebuloso e as autoridades nunca esclareceram as motivações de cada decisão, mas, aos poucos, e de forma inesperada, o artista foi retomando sua liberdade. Mesmo assim, depois de receber de volta seu passaporte em 2015, Weiwei decidiu se transferir para Berlim, onde seu filho já morava há um ano --o garoto tinha apenas 2 anos na época da prisão do pai.

Mas a história de Weiwei com o governo chinês na verdade começa antes de seu próprio nascimento: seu pai era um poeta integrante do Partido Comunista, que caiu em desgraça depois de um dos expurgos de intelectuais do regime de Mao Tsé-Tung. Enviado para regiões remotas do país, o pai de Weiwei foi obrigado a limpar privadas e morar em uma caverna.

A família só pôde retornar para Pequim em 1976, quando Weiwei estava se formando no colégio. Esta é parte da explicação de por que ele se interessou pela atual crise de refugiados, tema do filme que apresenta na Mostra.

“Eu nunca havia conscientemente me considerado um refugiado, mas sou, fui no passado e sou na atual situação. Claro que eu vim para outros país por escolha minha em vez de ser forçado a sair do meu país”, explica.

De volta a Pequim, o jovem Weiwei logo se interessou pelo mundo das artes e começou a participar de um grupo de vanguarda, que foi desmantelado pelo governo pouco depois. Desiludido, ele se mudou para Nova York, onde começou a experimentar com trabalhos em diferentes meios --instalações, fotografia, móveis, pinturas, livros e filmes--, mas sem grande sucesso até 1993, quando voltou à China. 

Rodeado de outros artistas, ele fez parte de uma nascente cena chinesa que resolveu desafiar o regime publicando livros sem aprovação oficial. Em seus escritos, Weiwei já criticava a supressão da criatividade empreendida pelo governo, mas também os colegas artistas que se furtavam a fazer críticas para manter uma posição confortável no país. Na virada para o ano 2000, Weiwei já havia despertado interesse internacional e se tornado um nome forte no circuito.

Ativista de redes sociais

Mas os problemas com o governo vieramcomeçaram mesmo depois que ele começou a escrever um blog, em 2005, onde rapidamente passou de centenas de fotos por dia para críticas aos mais diversos aspectos do regime, da corrupção ao modelo de desenvolvimento, até a realização da Olimpíada em 2008, segundo ele um modo de mascarar os problemas do país. Do blog ele passaria ao Twitter (que é bloqueado na China) e ao Instagram, onde hoje é um usuário dos mais ativos.

Um dos assuntos escolhidos por Weiwei --e que talvez tenha finalmente o colocado em apuros-- foi a morte de milhares de crianças durante o terremoto em Sichuan em 2008, supostamente causada pela má-qualidade dos prédios escolares onde elas estudavam. Como o governo sonegava informações sobre a identidade e número de vítimas mesmo meses depois da tragédia, o artista começou uma campanha de envio de cartas às autoridades buscando esclarecimentos.

Prisão

O cerco começou então a se fechar, com agentes seguindo o artista, câmeras vigiando a entrada de sua casa e visitas inesperadas da polícia --uma delas, antes de um dos julgamentos de Sichuam, resultou em um soco no rosto que mais tarde levou Weiwei à mesa de cirurgia para retirar um coágulo no cérebro.

Em 3 de abril de 2011, ele estava embarcando para Hong Kong quando foi detido pela polícia, no que ativistas de direitos humanos classificaram como uma nova onda de perseguição a dissidentes do regime comunista.

Sobre o período, ele escreveu: “Eu era vigiado 24 horas por dia. As luzes estavam sempre acesas. Havia dois guardas, em turnos de duas horas, parados ao meu lado --vigiando mesmo quando eu engolia um comprimido; eu tinha que abrir a boca para que eles olhassem a minha garganta”.

A experiência se tornou uma instalação na Bienal de Veneza em 2013, com cubos metálicos em que os visitantes podiam observar esculturas representando cenas da vida de Weiwei na prisão.

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Obra exibida na Bienal de Veneza em 2013 reconstrói os 81 dias em que Ai Weiwei ficou preso
Imagem: Gabriel Bouys/AFP Photo

Muros barreiras e refugiados

Weiwei chegaria em São Paulo para a cerimônia de abertura da Mostra de Cinema, realizada na noite de quarta (18), mas foi impedido de embarcar em Nova York pela companhia aérea United Airlines, que alegou que seu visto brasileiro estava vencido (não estava, e o artista conseguiu embarcar na quarta, depois de obter uma carta do consulado brasileiro atestando a validade de seu visto).

Desta vez, não foi perseguição política, mas não deixa de ser irônico que o erro tenha acontecido justo com ele, um artista tão calejado nos impedimentos de ir e vir e exatamente por isso defensor de um mundo sem muros e barreiras, que iria apresentar por aqui um filme sobre pessoas também impedidas de cruzar fronteiras.

Para ele, a situação faz parte de um contexto mais amplo. “Como sociedade, depois da globalização, depois desse esforço de mais de uma década da chamada ‘guerra ao terror’, nos tornamos muito menos autoconfiantes, menos corajosos e menos visionários. Nos tornamos mais míopes. E isto acontece no mundo todo. Costumávamos ter 11 muros dividindo fronteiras quando o muro de Berlim caiu, hoje temos mais de 70”, aponta.

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Ai Weiwei em cena do filme "Human Flow: Não Existe Lar se Não Há para onde Ir"
Imagem: Divulgação

Para filmar “Human Flow” durante um ano, ele e sua equipe rodaram 23 países --da Grécia ao México, passando por Bangladesh, Quênia, Iraque, Afeganistão e Palestina--, visitando 40 campos de refugiados e fazendo mais de 600 entrevistas. Entre imagens aéreas feitas com drones e momentos capturados com seu próprio celular, Weiwei também interage com essas pessoas que são vítimas do que classifica como a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.

“Os valores mais essenciais dos direitos humanos e da dignidade humana estão sendo ignorados e terrivelmente violados, e isso fere nossa sociedade e nossa civilização. Mas, no longo prazo, temos que pensar que todos esses direitos nunca foram garantidos, sempre foi preciso defendê-los. E esta é uma oportunidade para que nossas vozes sejam ouvidas e para redefinirmos a humanidade”, acredita.

Com obras vendidas por cifras milionárias, sua experiência é bastante diferente da de um sírio que deixou para trás um país destruído pela guerra, sem poder levar quase nada. Mas, hoje também um exilado, Weiwei parece compreender bem o trauma de ser obrigado a deixar seu próprio país.

Serviço:

“Human Flow: Não Existe Lar se Não Há para onde Ir”
Quando:
qui. (19), 19h (Cinearte 1); sex. (20), 17h50 (Espaço Itaú Frei Caneca 2); sáb. (28), 17h15 (Espaço Itaú Augusta 1)