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Por que não existe ideia pior do que contar a origem do Coringa no cinema

Roberto Sadovski

30/08/2017 18h40

Qual era mesmo aquele ditado sobre quem vai com muita sede ao pote se lambuza? Não lembro, não importa. O fato é que as grandes rivais no universo dos super-heróis não sabem como ou quando parar. A Marvel lança um título de quadrinhos de sucesso, como Pantera Negra e Doutor Estranho? Então por que não enfiar mais três ou quatro spin offs goela abaixo? Homem-Aranha: De Volta ao Lar é um tremendo arrasa-quarteirão? Então vamos espremer a propriedade intelectual até o caroço, com Venom, Silver & Black (com duas coadjuvantes de quinta dos gibis do Aranha que você nunca ouviu falar) e qualquer vilão que possa render mais uns trocos (ok, é Sony, não Marvel, mas a ideia é a mesma).

O que nos leva ao(s) projetos(s) com o Coringa na Warner/DC. O personagem é, inegavelmente, um dos mais populares da história. No cinema o placar é extremamente positivo: mesmo com a versão murcha de Jaret Leto em Esquadrão Suicida, ainda temos na cinemateca o dínamo que foi Jack Nicholson em Batman e a versão magistral de Heath Ledger em Batman – O Cavaleiro das Trevas. Na TV, Cesar Romero criou uma figura icônica para o Palhaço do Crime na série de TV do Homem-Morcego nos anos 60, enquanto Mark Hamill fez do vilão um psicopata cômico no desenho animado do herói nos anos 90 – papel que ele reprisa esporadicamente nos longas de animação da DC. O Coringa, porém, nunca é o protagonista de suas histórias, e em deveria ser: na mitologia do Batman, ele é seu oposto, o outro lado da moeda, o resultado torto de alguém entregue à obsessão. Essa aura de mistério faz parte do DNA do personagem, e também motivo de seu sucesso.

Arlequina e Coringa, inserido no DCE, meio que faz sentido

Então nada mais estranho do que o anúncio de não só um, mas dois filmes com o Coringa sob os holofotes. O primeiro é o mais "óbvio", com Margot Robbie e Jared Leto reprisando seus papéis em Harley Quinn & The Joker, que teria a direção de Glenn Ficarra e John Requa, dupla responsável por O Golpista do Ano e Amor a Toda Prova. O filme é descrito pelo estúdio como uma "história de amor criminosa" e, vá lá, tem estofo para vingar. O outro projeto com o arquivilão, porém, é o que tem deixado fãs coçando a cabeça. Seria um filme centrado na origem do Coringa, lançado fora do Universo Estendido DC – ou seja, com nenhuma conexão com O Homem de Aço, Batman vs Superman ou Esquadrão Suicida. O time escolhido para tocar a coisa toda é ainda mais estranho: Todd Philips (Se Beber, Não Case) dirigindo um roteiro de Scott Silver (que escreveu o drama 8 Mile, com Eminem), com produção de Martin Scorsese (que é, bom, Martin Scorsese!).

Se mistura nos bastidores pode render algo inusitado e sensacional, uma coisa é fato: ninguém pediu para saber qual a origem do Coringa. Nos quadrinhos (a fonte da coisa toda, vale sempre lembrar), o passado do vilão sempre foi envolto em mistério. Em sua história de mais de sete décadas, só Alan Moore arriscou a voltar o olhar para o passado com o clássico dos gibis A Piada Mortal. Ainda assim, ele deixa claro que é uma versão, entre muitas outras em conflito na mente fragmentada do personagem. Os quadrinhos recentes do Batman criaram a possibilidade de haver não um, mas três (!) homens por trás da fachada do Coringa, e ainda assim é um caminho tortuoso que os editores da DC ainda estão navegando. Para ser justo, Tim Burton praticamente já fez a origem do vilão em Batman, com Jack Nicholson no papel de um gângster, Jack Napier, que calhou de ser o sujeito que matou os pais de Bruce Wayne. No longa animado A Máscara do Fantasma, o Coringa também surge antes do acidente que tornou sua pele branca, seus cabelos verdes e sua mente um abismo. Ainda assim, ele sempre fora coadjuvante, um gatilho para a jornada do Homem-Morcego.

O clássico dos quadrinhos A Piada Mortal

Existe um motivo, afinal, para que o Coringa nos quadrinhos, apesar da popularidade, nunca ter uma revista em quadrinhos própria. Ou melhor, teve um único título, que durou oito edições, entre 1975 e 1976. Como ele era o protagonista, em uma era que os quadrinhos ainda eram vistos como entretenimento infanto-juvenil, sua insanidade foi aliviada, ele não podia matar ninguém e, ao final de cada edição, seu destino era a prisão. Castrar um personagem como o Coringa para lhe conferir apelo para as massas é lhe privar do que o faz mais interessante: seu mistério e sua imprevisibilidade. Sem falar que é impensável uma aventura do Coringa sem o Batman. Eles são como ying e yang, duas energias opostas e complementares. Embora o Homem-Morcego tenha um sem número de inimigos para rechear seus filmes, o Coringa simplesmente não combina como nêmesis de outro herói – ou pior, como um anti-herói enfrentando um mal maior. Até porque não existe mal maior que… o Coringa!

Mas Mulher-Maravilha colocou mais de 800 milhões de dólares nos cofres do estúdio, e a demanda por mais e mais filmes de super-heróis com o selo DC nunca esteve tão alta. É questionável que o estúdio consiga entregar absolutamente tudo que estão prometendo, e o destino de muitos de seus projetos fatalmente será a gaveta. Depois de Liga da Justiça, que chega aos cinemas em dezembro, só Aquaman (com direção de James Wan e fotografia principal na lata), Shazam (que começou sua produção hoje, sob direção de David Sanberg) e Mulher-Maravilha 2 (800 milhões garantem a volta de Patty Jenkins e Gal Gadot) tem estreia garantida. Entre o mar de projetos em desenvolvimento estão The Batman (de Matt Reeves, vai saber se ainda terá Ben Affleck), The Flash: Flashpoint (ainda sem diretor), Esquadrão Suicida 2 (também sem diretor), Sereias de Gotham (em desenvolvimento por David Ayer) e Batgirl (se sair do papel, terá Joss Whedon no comando).

Boa sorte a quem for seguir os passos desse cara aí…

Este Coringa do combo Todd Philips/Scott Silver/Martin Scorsese não é exatamente uma ideia ruim. Criar um "selo" com filmes fora de seu "universo" não só espelha uma tradição da DC nos quadrinhos – que há décadas cria histórias em realidades paralelas com seus maiores personagens –, como também seria um grande trunfo para marcar território e mostrar de que forma eles podem ser diferentes, mais ousados e surpreendentes que a Marvel. Se os gibis forem uma fonte de inspiração, é fácil encontrar histórias perfeitas para ser traduzidas em tela grande, sem amarras ou conexões com outros filmes. Asilo Arkham, de Grant Morrisson e Dave McKean, seria perfeito como uma aventura surreal e sufocante. Ou O Homem Que Ri, em que Ed Brubaker e Doug Mahnke recontam a primeiríssima aparição do vilão nos quadrinhos com um ar moderno. Ou ainda Coringa, de Brian Azzarello e Lee Bermejo, uma história rara sem o Batman, em que o ponto de vista é de um capanga do vilão, Jonny Frost, e sua perigosa proximidade com o "chefe" ao sair do Arkham. Existe um caminho. E ele passa longe de contar sua origem. Afinal, já sabemos o que aconteceu com Hannibal: A Origem do Mal

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.