Topo

Santiago Nazarian e Mário Rodrigues falam sobre literatura engajada e “safanões no leitor” na Flipelô

Rodrigo Casarin

12/08/2017 21h03

Mário Rodrigues e Santiago Nazarian fizeram uma boa mesa no começo da noite deste sábado na Flipelô, evento que acontece até amanhã em Salvador. Com mediação de Milena Britto e norteados pelo tema "Literatura escuridão adentro", falaram sobre seus livros mais recentes, fronteiras entre gêneros literários e o que é ou não uma boa literatura – ponto que resultou em discordância entre Mário e um integrante da plateia.

Autor de "Receita Para se Fazer um Monstro" (Record), livro vencedor do Prêmio Sesc de 2016, composto por mais de 90 breves contos que podem ser lidos como se constituíssem um romance, Mário começou falando sobre as crueldades da infância que lhe serviram de inspiração para que compusesse sua obra, como cantigas na linha de "atirei o pau no gato", que já deixam os pequenos em contato com maldades desde cedo. "Em algum momento, se não houvesse o filtro da racionalidade, isso explodiria", acredita. "Se me perguntam: por que você fez esse livro? Para dizer aos homens que não sejam tão monstruosos", complementou na sequência.

Também citou seu interesse pelas fronteiras entre os gêneros literários e a vontade de borrar esses limites ao escrever "Receita Para se Fazer um Monstro", para que as conexões entre as histórias – protagonizadas por um mesmo personagem – conduzissem o leitor até o final do livro. Uma condução nem um pouco cortês, diga-se. "A ideia é que o leitor fosse tomando bordoadas, como se o narrador tivesse o espancando mesmo, tomando safanões. Aí o leitor pensa: tem coisa pior [no livro]? Tem".

Em certo momento, Mário leu o trecho inicial da obra, que dá uma amostra do que o leitor terá pela frente: "Toinho me roubou uma dúzia de chimbres. Riu de minha cara e fugiu pra dentro de sua casa. Fiquei à espreita durante horas ao lado da porta. Quando botou o focinho pra fora a fim de bisbilhotar a rua dei um murro nas ventas do safado. Senti o som e a consistência do septo sendo esmagado pelos nós dos meus dedos".

"Neve Negra"

Nazarian, por sua vez, falou principalmente sobre "Neve Negra", romance que acaba de lançar pela Companhia das Letras. A obra, que conta a história de um pintor bem-sucedido que volta para casa na Serra Catarinense na noite mais fria do ano e se depara com uma série de fatos inesperados, segue o estilo que o próprio autor assume como pós-terror. "Seria o terror bom, com mais consistência, com alguma crítica social", explica, ressaltando que procurou fazer "um livro que vá um pouco além dos clichês do terror. Eu sabia até onde o terror poderia ir".

Em "Neve Negra", o tema central que "extrapola" esses clichês é a paternidade. O protagonista passa a narrativa lidando com questões caras aos homens que são pai ou que estão prestes a ter um rebento: "será que o filho é meu? O que há te mim nessa criança? Será que ela tem algo de errado?".

Nazarian ainda foi perguntado sobre a perspectiva para o assunto enquanto autor homossexual. "Acho uma bobagem esses autores que querem negar que exista uma literatura gay ou feminina, por exemplo. Meus autores favoritos não escrevem literatura gay, mas quase todos são homossexuais. Por mais que não esteja em um primeiro plano, há algo da homossexualidade que transparece. Quando escrevi 'Neve Negra', que tem um protagonista hétero, casado, com filho, percebi que tem um homoerotismo latente, algo que talvez não se controle. Essa temática pode ser um subtexto que aceito, para mim não é problema".

Literatura X engajamento

Perto do final do debate, quando o assunto passou pelas "obrigações" que a literatura poderia ter, Mário falou que, a seu ver, tal arte está acima de qualquer tipo de militância, engajamento ou questões políticas e ideológicas, e que quando isso se inverte, quando os textos passam a servir a um propósito específico, a "literatura sempre fica em maus lençóis".

A fala desagradou parte da plateia, tanto que um dos expectadores, o poeta Nelson Maca, pediu o microfone, apresentou-se dizendo fazer uma literatura abertamente engajada, então, pelo que ouvira, "menor", e contestou Mário, afirmando que a estética não estava acima da ética e que, em outras palavras, via nos livros uma ferramenta para lhe servir em suas lutas.

A réplica de Mário pode ser condensada com as últimas palavras de sua resposta: "Discordamos profundamente. Fim".

Viajei a Salvador a convite da organização da Flipelô.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.