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Por que o anúncio da aposentadoria de Daniel Day-Lewis era inevitável

Roberto Sadovski

21/06/2017 18h51

Em 1989 eu fui ao cinema com meu pai assistir a Meu Pé Esquerdo, biografia do artista Christy Brown, que sofria de paralisia cerebral, dirigida por Jim Sheridan. "Me diz uma coisa, esse moço é mesmo deficiente?", perguntou seu Raimundo ao fim da sessão, olhos ainda marejados. Disse que não, que era um trabalho muito meticuloso de atuação. "Então ele é muito bom", completou meu pai. Fato. Daniel Day-Lewis, o "moço" em questão, era mesmo muito bom. O tempo fez a ele como faz com o vinho: deixou ainda melhor o que já era perfeito. Em quatro décadas de carreira, o ator inglês de 60 anos mostrou o poder de seu talento, dando vida a personagens complexos e sempre desaparecendo por completo sob seu manto. Nunca era Daniel Day-Lewis em cena; ao mesmo tempo, era ele de ponta a ponta.

Depois do lançamento de Phantom Thread, filme que ele está rodando com Paul Thomas Anderson, não teremos mais a genialidade de Day-Lewis para nos mostrar a dimensão do que um ator pode fazer em cena. O ator anunciou sem muita fanfarra que está se retirando da vida pública. Não houve maiores dramas e nem um gatilho específico. Em seu comunicado à imprensa, o ator deixou claro que estava saindo da ribalta, queria sua privacidade respeitada e só. Nada mais justo. A obsessão do planeta com a cultura de celebridades às vezes esconde o fato de que essas pessoas estão realizando seu trabalho e os holofotes são, muitas vezes, uma consequência inevitável. Day-Lewis jamais se mostrou afeito ao fardo que acompanha seu ofício, mas também nunca se mostrou um personagem interessante para quem vive de projetar seus próprios anseios em figuras públicas. Para ele, uma única coisa importava: atuar.

Como Christy Brown em Meu Pé Esquerdo

A notícia de sua aposentadoria pega os fãs de cinema de surpresa e vem acompanhada de uma certa tristeza. Mas, sejamos francos, era inevitável. Para Daniel Day-Lewis, atuar nunca foi só uma profissão. Ele transcendia métodos e instinto para habitar mente e alma de outra pessoa, desaparecendo por completo no processo. Seu estilo se tornou lendário, a começar pelo fato de ele nunca abandonar um personagem durante a produção – o que significa que Day-Lewis não ressurgia, nem quando as câmeras não estavam rodando, até o trabalho estar concluído. O ator também ia a extremos para literalmente se tornar outras pessoas. Ele quebrou duas costelas ao manter-se por semanas a fio na cadeira de rodas de Christy Brown, com o corpo estático, ao fazer Meu Pé Esquerdo. Antes de rodar O Último dos Moicanos, ele viveu sozinho na floresta, caçando e pescando para seu sustento. Para Em Nome do Pai, Day-Lewis perdeu 13 quilos e ficou dias preso em uma cela, submetido a abusos físicos e verbais por parte da equipe. Ele construiu sua própria cabana em As Bruxas de Salem, e não tomou banho até a filmagem terminar. Treinou boxe arduamente por três anos antes de filmar O Lutador. Ouviu Eminem para canalizar raiva em Gangues de Nova York. Aprendeu tcheco antes de A Insustentável Leveza do Ser.

Este nível de compromisso mostra o quanto Daniel Day-Lewis era meticuloso em suas escolhas. Ele jamais saiu de casa por um cheque ou para se adaptar ao gosto de Hollywood. Isso fica claro na carta que ele escreveu para Steven Spielberg ao recusar o papel principal em Lincoln. Em linhas de honestidade sem igual, o ator elogia o projeto e se diz tocado pelo roteiro e pelo retrato desenhado para os personagens. "Mas eu sinto que só posso fazer esse trabalho se não houver nenhuma outra escolha", ressaltou. "O assunto precisa coincidir de maneira inexplicável com uma necessidade muito pessoal e com um recorte de tempo muito específico… e meu fascínio por 'Abe' é o de um espectador que tem desejo de ver a história ser contada, não de fazer parte dela." Spielberg já mantinha sua pesquisa sobre a vida de Abraham Lincoln por 12 anos. Ele esperou mais um ano para filmar na tentativa de convencer Day-Lewis a aceitar o papel, já que o diretor não conseguia enxergar mais ninguém em seu lugar. Conseguiu.

Lincoln, de Steven Spielberg, lhe rendeu seu terceiro Oscar

Lincoln foi o terceiro Oscar de melhor ator de Daniel Day-Lewis, seguindo as estatuetas por Sangue Negro e por Meu Pé Esquerdo. Ele é o único ator a ter três prêmios da Academia na categoria principal, feito que dificilmente será igualado (Tom Hanks e Jack Nicholson precisam caprichar para bater a marca). Mas é claro que prêmios, dinheiro, fama, são consequências que não estão no campo de visão de Day-Lewis. Para que ele se empolgue e se apaixone por um personagem é preciso uma conexão mais profunda. Do contrário, ele não vê a necessidade de comprometer seus princípios. O ator jamais entrou no jogo dos blockbusters. Jamais embarcou num projeto para lhe conferir credibilidade em troca de "um trabalho divertido" e um cheque gordo. Não que isso seja um problema, e muitos de seus pares de talento equivalente seguiram este caminho e, posteriormente, encontraram filmes em que exercitavam seus músculos dramáticos.

O cinema, afinal, assemelha-se cada vez mais a um caldeirão de produtos. Não é o fim do mundo. Mas é um cenário que não abriga mais um ator como Daniel Day-Lewis. Filho do poeta Cecil Day-Lewis e da atriz Jill Bacon, ele tinha 14 anos quando foi para frente das câmeras pela primeira vez, um papel mínimo no drama Domingo Maldito, de 1971. Aperfeiçoou suas habilidades no palco e na TV antes de se mostrar ao mundo de maneira fulminante em 1985 com Minha Adorável Lavanderia e Uma Janela Para o Amor. Em 1997, depois de fazer O Lutador e não encontrar um projeto que o movesse, mudou-se para Florença onde, por alguns anos, tornou-se um sapateiro sob as asas do mestre italiano Stefano Bemer. Martin Scorsese o convenceu a voltar para um set de filmagem com Gangues de Nova York. E é assim, de forma surpreendente, que o mundo se despede do talento de um gênio, que disse adeus com essas palavras: "Daniel Day-Lewis não trabalhará mais como ator. Ele tem profunda gratidão por todos os seus colaboradores e pela platéia por todos estes anos. Essa é uma decisão privada e nem ele ou seus representantes farão mais comentários sobre o assunto". Phanton Thread chega aos cinemas americanos no Natal deste ano.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.