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O que você faria se seu filme favorito fosse produzido por um estuprador?

Roberto Sadovski

23/10/2017 02h21

É possível separar o artista de sua arte? Essa pergunta anda buzinando meus ouvidos desde que Harvey Weinstein foi relevado como assediador e estuprador por dúzias de mulheres que, após quase três décadas de silêncio, jogaram o holofote em cima dos hábitos hediondos do produtor. Nas últimas semanas acompanhamos sua queda irrefreável, denúncia empilhada sobre denúncia, com parceiros e amigos deixando bem público seu repúdio com o tratamento asqueroso que Harvey reservava a mulheres próximas – de secretárias a estrelas de primeira grandeza. Sua carreira está enterrada, com o risco de ele terminar na prisão ou recheando a própria empada com uma azeitona. O recado ficou claro, agora é questão de tempo para que outras vítimas apontem o dedo para outros predadores. Fim de papo. Certo?

Daí eu revi Pulp Fiction. E o caldo entornou.

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Como produtor, Harvey Weinstein não tinha a melhor das reputações. Era conhecido por, muitas vezes, retirar um filme das mãos de seus realizadores e retalhar o produto final segundo sua visão de mercado. Mutação, primeiro filme de Guillermo Del Toro para o mercado americano, só não ficou 100 por cento desfigurado graças à interferência de sua estrela, Mira Sorvino, que à época tinha mais influência e um Oscar embaixo do braço. Olhos Abertos, primeiro longa de M. Night Shyamalan, não teve tanta sorte. O drama Studio 54, concebido como uma viagem sombria pelo underground nova-iorquino dos anos 70 movido a ambição e drogas, foi reconfigurado como um candidato a blockbuster quando parte de seu elenco protagonizou filmes de sucesso durante sua produção – o resultado bipolar fez com que o filme fosse rejeitado por todos os públicos.

Pulp Fiction, que inaugurou o cinema indie moderno

Mas Pulp Fiction, obra que basicamente inaugurou o cinema independente americano como conhecemos hoje, existe em parte pela visão e tenacidade de Weinstein em enxergar o gênio criativo e as possibilidades comerciais no trabalho do diretor Quentin Tarantino. Foi Harvey, primeiro pela Miramax, depois pela The Weinstein Company, quem viabilizou sua carreira, de Jackie Brown a Kill Bill a Os Oito Odiados ao novo projeto sobre a Família Manson. Tarantino demorou a se pronunciar sobre as revelações acerca de seu amigo de quase três décadas, finalmente dizendo que deveria ter feito mais porque a natureza de Weinstein não lhe era desconhecida. Kevin Smith, que também deve sua carreira ao produtor, que lhe abriu espaço para fazer O Balconista e manteve uma relação de amizade até se desentenderem à época do lançamento de Pagando Bem Que Mal Tem, foi além: envergonhado, declarou que cada centavo que ganhar de filmes feitos em parceria com Weinstein irá, a partir de agora, para uma organização em defesa do direito das mulheres.

A cada dia, uma nova revelação. Mais e mais atrizes e colaboradoras que foram vítimas do comportamento de Harvey Weinstein contarão sua história. Mais e mais seus antigos parceiros divulgarão notas de repúdio e mea culpas sobre sua inação. Ainda assim, os filmes permanecem. A contribuição do produtor é gigantesca, e é estranho observar seus filmes agora sem imaginar o que ocorria nos bastidores. Ele ajudou a lançar Gwyneth Paltrow como estrela em Emma, e a colocou na posição de ganhar um Oscar por Shakespeare Apaixonado – mas ela já foi à frente e revelou o assédio por parte de Harvey. Ben Affleck e Matt Damon só possuem uma carreira porque ele viabilizou Gênio Indomável – Affleck e Damon estenderam a parceria por vários outros filmes e também com a série de TV Project Greenlight. A essa altura é de revirar o estômago imaginar o que ocorria atrás das câmeras da série Project Runway, ambientada no mundo da moda.

Mira Sorvino em Mutação, vítima da interferência de Weinstein

Em sua vasta carreira, Harvey Weinstein se tornou o sujeito que mais recebeu agradecimentos por parte de vencedores do Oscar. Ele ajudou a lançar a carreira de David O. Russell com Procurando Encrenca, e lhe estendeu a mão outra vez quando o diretor precisava de um respiro: o resultado foi o premiado O Lado Bom da Vida. Por falar em prêmios, as empresas de Harvey somam 81 estatuetas douradas, começando pelas vitórias de Daniel Day-Lewis e Brenda Fricker em Meu Pé Esquerdo, em 1990, até a trilha sonora de Os Oito Odiados, assinada por Ennio Morricone. O Paciente Inglês, Shakespeare Apaixonado, Chicago, O Discurso do Rei e O Artista estão entre seus filmes mais premiados com o Oscar. Claro, isso agora faz parte do passado, já que Harvey foi expulso da Academia e a The Weinstein Company é, no mínimo, tóxica em qualquer premiação a partir de agora.

Mas tudo isso reflete o homem, e ele é uma criatura repulsiva, colhendo agora frutos de uma vida secreta marcada pelo abuso de seu poder. Os filmes que ele ajudou a criar, entretanto, não devem ser renegados por sua conduta. Woody Allen (que se apressou em frear a "perseguição" contra Weinstein) tem sua cota de acusações, e ainda faz uma pérola ocasional. Roman Polanski, que será preso por pedofilia no segundo em que colocar os pés em solo americano, foi premiado (à distância) com o Oscar de melhor diretor por O Pianista – e encara, agora, mais acusações de abuso sexual cometidos nos anos 70. O roteirista e diretor James Toback enfrenta a acusação de assédio por 38 mulheres. Eu duvido que as revelações contra homens que se escondiam por trás do poder dentro da indústria cinematográfica parem por aí. É um movimento irrefreável e necessário, para causar a mudança em um ambiente tóxico que, em pleno século 21, precisa deixar práticas tão nefastas para trás. Saber que essas pessoas criaram obras de arte é um sentimento agridoce. Apreciar seu cinema se torna difícil, embora a arte por vezes sobrepuje o artista. Mas nenhum filme, em nenhuma circunstância, vale mais que o sofrimento silencioso de um ser humano.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.