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Logan é o “Cavaleiro das Trevas” dos filmes dos X-Men – só que muito melhor

Roberto Sadovski

02/03/2017 16h41

Logan não é um "filme de super-heróis". Claro, traz personagens de histórias em quadrinhos com poderes especiais e ainda responde a algumas convenções deste, vá lá, sub-gênero. Mas a aventura vai muito além do que se pode esperar de uma superprodução com sujeitos fantasiados se estapeando: é um western moderno, um road movie melancólico, um drama sobre o medo e incapacidade de manter uma família, o pavor da rejeição, a busca pela identidade, o preço da violência. É um filme que pode redefinir o que se espera da adaptação para o cinema de um heróis dos gibis. Mais ou menos o que Christopher Nolan fez quando lançou seu Batman – O Cavaleiro das Trevas em 2008. Só que, aqui, o diretor James Mangold criou um animal mais sofisticado, mais cru, mais visceral. Melhor.

De cara, Logan é um filme mais corajoso que seus pares. A começar pela restrição que mantém a molecada longe dos cinemas – nos EUA ele recebeu um R, que é seu "proibido para menores"; no Brasil, está liberado para quem tem mais de 16 anos –, que lhe dá liberdade para apostar em decisões criativas mais ousadas. E não só pela violência, mas também pelo tom mais maduro e pelos temas que o filme aborda. Não existe aqui um vilão em busca de dominação global, não existe um cavaleiro pronto para salvar o dia num cavalo branco. Mangold não parece interessado em repetir a estrutura que se tornou norma dos super-heróis no cinema, e nem tenta subvertê-la ou desconstruí-la. O que ele faz é pegar as quase duas décadas de história dos X-Men no cinema e usar este peso a seu favor. O passado não é uma âncora, e sim um motor que nos ajuda a entrar na história.

Patrick Stewart e Hugh Jackman se despedem do mundo dos mutantes

Assim, fica mais fácil entender um mundo que não tem mais mutantes. Com sutileza, o filme mostra que havia uma rejeição, depois uma idolatria (existe gibis dos X-Men no filme), pelo homo superior, agora uma espécie em extinção. Os remanescentes vivem reclusos, virando as costas para um mundo que, afinal, os rejeitava. Neste cenário somos reapresentados a Logan, o Wolverine, desde sempre o mais popular dos mutantes da Marvel. Mas ele não é mais o guerreiro implacável. A idade teve um preço em sua mutação: seu fator de cura não funciona mais como antes, deixando seu corpo um mapa de cicatrizes e lembranças ruins. O que lhe resta é se manter longe de encrenca e cuidar do professor Xavier: nonagenário, a mente mais poderosa do planeta precisa estar sempre dopada para não sair do controle. Hugh Jackman e Patrick Stewart fazem, por sinal, seu melhor trabalho com os personagens – e um dos melhores de sua carreira. A essa altura, eles entendem a dinâmica entre seus personagens e usam o conhecimento que a plateia tem deste relacionamento para alavancar a trama.

A certa altura, o filme introduz um antagonista, na forma do ciborgue Donald Pierce (Boyd Holbrook, de Narcos), e um arco: uma jovem mutante, Laura, que traz habilidades similares às do Wolverine, entra na vida de Logan e Xavier, e o trio tem de cair na estrada para a) fugir de seus algozes e b) buscar um lugar paradisíaco, um suposto refúgio para mutantes. Mas Mangold não usa a trama como desculpa para encavalar cenas de ação. Seu interesse é revelar as camadas da personalidade de seu protagonista, usando Laura e Xavier como catalizador. Veja bem, nos quadrinhos o Wolverine nunca foi exatamente um personagem profundo. Ele é apresentado como uma máquina de matar que precisa manter o controle, e só ganhou alguma densidade quando Chris Claremont e Frank Miller o colocaram no Japão e cruzaram sua história com samurais, ninjas e conceitos de honra, tradição e a rejeição da violência para se atingir a paz. Em Logan, Mangold (que dirigiu o bom Wolverine Imortal) vai muito mais a fundo: em sua concepção, ele é um pária em constante busca de redenção, mesmo que rejeito constantemente os meios para conseguir. Na estrada com Xavier e Laura, ele finalmente tem a família que sempre buscou e relutou em aceitar. Ao mesmo tempo, tem consciência que, por seu histórico, a felicidade é efêmera e ele, talvez, não mereça um final feliz – o que torna sua luta ainda mais urgente e, ao mesmo tempo, mais triste. É um material poderoso.

O "vilão" do filme, interpretado por Boyd Holbrook

Não é exagero, portanto, encarar Logan menos como a adaptação de um gibi (a série O Velho Logan, de Mark Millar e Steve McNiven, não passa de inspiração muito distante) e mais como uma combinação, como o próprio Mangold já frisou, de Os Imperdoáveis (o pistoleiro aposentado obrigado a encarar um último trabalho) com Pequena Miss Sunshine (a família fracturada que encontra seu eixo na estrada). Água e óleo que, graças a algum poder mutante, misturam-se à perfeição. O grande "mapa" para o filme, porém, não é nem um pouco sutil: é o western clássico Os Brutos Também Amam, que tem cenas e até diálogos encaixados aqui. É uma jornada que resume à perfeição a história que o diretor quer contar, a do anti-herói incapaz de encontrar a própria felicidade. E não dá para ignorar que a série de quadrinhos Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, também encontra ecos na missão derradeira do mutante canadense. Curiosamente,  seus elementos encontram maior ressonância aqui do que em seu próprio quintal, já que foram usados no cinema em Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (que encerrou a trilogia dirigida por Christopher Nolan em 2012) e em Batman vs Superman (este já foi surrado o bastante, melhor deixar assim).

Se Patrick Stewart entrega a dose de fragilidade e nobreza necessária à seu envelhecido Charles Xavier, e a estreante Dafne Keen é uma revelação como Laura (ou X-23, para os fãs esboçarem um sorriso), o show aqui é mesmo de Hugh Jackman. Não é segredo que ele encerra sua contribuição para o universo mutante da Marvel com Logan, é ele caprichou. Foram dezessete anos e nove filmes, e toda essa bagagem é essencial para entender o momento que o personagem enfrenta em cena, bem como sua conclusão. O ator entende a jornada de seu personagem e entrega uma performance carregada de nuance e simbolismo, de introspecção dolorida e fúria em explosão. Porque a restrição mais madura permite não só abordar temas mais específicos, como dá a Jackman e Mangold a oportunidade para, finalmente, colocar em cena o Wolverine selvagem e brutal que, até então, só arranhara este potencial. E não só mostrar a violência, mas também suas consequências – para as vítimas mutiladas e também para o próprio Logan, que sente em sua pele e em sua alma o preço de sua vida longa e brutal.

Dafne Keen é uma revelação como Laura, uma nova mutante em um mundo árido

É esse o grande ponto de mudança empreendido por Logan. Em um gênero que caminha perigosamente para a repetição, filmes como Logan mostram que o caminho pode ser diverso. Ou Deadpool. Ou Guardiões da Galáxia. Ou Homem de Ferro. Ou Batman – O Cavaleiro das Trevas que, até então, era a baliza entre os heróis fantasiados no papel e sua tradução para um mundo de carne e osso, em que as ações dos mocinhos podem ter consequências devastadoras. Logan aprende cada uma das lições e vai além, cumprindo a jornada do herói sem uniformes vaidosos, ação em escala global ou antagonistas extravagantes. Ao fim, é apenas um homem tentando fazer o que é certo. Um herói clássico em um filme que, pode acreditar, vai renovar sua fé no potencial dos filmes baseados em histórias em quadrinhos.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.