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Roberto Sadovski

Por que Marvel e DC deviam parar de publicar HQs de super-heróis

Superman, Batman e Mulher-Maravilha, principais heróis da DC, no traço de Jim Lee - DC
Superman, Batman e Mulher-Maravilha, principais heróis da DC, no traço de Jim Lee Imagem: DC

Colunista do UOL

17/08/2020 06h55

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No próximo dia 22 acontece o DC Fandome, evento que celebra o universo dos super-heróis compartilhado por Superman, Batman e dúzias de outros. Por 24 horas, painéis online recebem astros de filmes, séries de TV, produtores de videogames e criadores de animações encabeçadas por personagens da DC. Histórias em quadrinhos? Ah, estão espremidas ali em meio a programação.

A verdade é que, hoje, um evento para celebrar alguns dos maiores heróis das HQs não está errado em deixar os gibis de lado. A Warner, dona da bola, entende que papel é nicho, e que o jogo dos adultos acontece mesmo com produções milionárias e massificadas em consoles, cinema (quando voltarmos a ter isso) e no streaming. Gibi não dá dinheiro. Gibi é feito para os nerds que já pagam boletos. Gibi não é a estrela do show.

Não deixa de ser agridoce que o DC Fandome aconteça justamente agora, quando a DC Comics, como parte dos planos de reestruturação de sua linha editorial, dispensou editores e se prepara para cancelar títulos e contratos de artistas freelancers. Sim, tudo com Batman no título ainda é um best seller. Mas esse reducionismo é o "novo normal" em um mundo de propriedades intelectuais milionárias, em que os dólares enfileirados pelos quadrinhos empalidecem ante outras mídias.

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Gal Gadot em 'Mulher-Maravilha 1984'
Imagem: Warner

A Marvel encara um caminho parecido. "Vingadores Ultimato" é a maior bilheteria de todos os tempos, e seus personagens são hoje, todos, ícones pop. Mas se você comprar a edição mais recente de "Os Vingadores" nas bancas (ou online, novos tempos), vai encontrar uma equipe diferente em uma linha cronológica que precisa de uma limpeza.

Tirando alguns momentos de brilho, como o excepcional "O Imortal Hulk", de Al Ewing e Joe Bennett, está difícil acompanhar os gibis da Marvel com um sorriso. Homem-Aranha está ok (apesar da confusão que foi "Carnificina Absoluta", e os novos X-Men de Jonathan Hickman começaram com uma premissa inovadora e empolgante. Existe ainda uma ou outra novidade em campo. O resto? Várzea.

Apesar de hoje atingirem unicamente os entusiastas, gibis ainda são necessários como produto. É de onde vem as novas ideias que tomam forma depois em mídias mais lucrativas. É o laboratório em que artistas podem experimentar, em que os produtos de fato são nutridos, em que um erro não custa milhões de dólares.

Mas é um nicho comparativamente minúsculo. Não é difícil encontrar fãs de super-heróis do novo século (que já tem duas décadas!) que nunca abriram uma história em quadrinhos na vida. A real é que nem precisam. A introdução ao mundo da Marvel ou da DC, só para ficar nas duas maiores editoras de personagens superpoderosos, acontece hoje por dezenas de caminhos diferentes.

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'O Imortal Hulk' é atualmente a melhor HQ da Marvel
Imagem: Marvel

O cinema é hoje a maior vitrine para heróis como, por exemplo, Aquaman. O filme com Jason Momoa, aventura ligeira dirigida por James Wan, bateu US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais. Nos quadrinhos, Arthur Curry continua atrás da enésima reinvenção para se manter relevante. Ainda é publicado, em edições encadernadas especiais. Ninguém dá muita bola - e ninguém vai encontrar no papel o herói que viram no cinema.

Foi na tela grande também que personagens de segunda linha como Capitão América e Homem de Ferro se tornaram ícones globais, indiscutivelmente com o mesmo peso de medalhões como Batman ou Superman. No papel, por outro lado, a coisa anda aos tropeços.

A série atual do supersoldado enveredou por um caminho político em que o roteirista Ta-Nehisi Coates está a dois passos de subir num púlpito em uma trama que não engrena. A arte da edição mais recente é um terror!, enfeitado por um lápis indigno do personagem. Homem de Ferro? Este sequer tem uma série atualmente nas bancas.

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Chris Hemsworth como Thor em 'Vingadores: Ultimato'
Imagem: Marvel/Disney

No excelente livro-reportagem "O Império dos Gibis", lançado pela Heroica e viabilizado pelo catarse, os autores Manoel de Souza e Maurício Muniz fizeram a radiografia mais completa das décadas em que super-heróis da Marvel e da DC faziam parte do catálogo da Editora Abril. Em algum momento do novo século, eles apontam, gibis com personagens fantásticos deixaram de ser um produto de massa para ser oferta a um nicho.

Foi mais ou menos na mesma época em que o cinema, a partir do sucesso de "X-Men", passou a abraçar os herois de poderes exóticos e uniformes coloridos vistos nas HQs como sua nova espinha dorsal financeira. Com o sucesso artístico e comercial de "Batman - O Cavaleiro das Trevas" e o início do Universo Cinematográfico Marvel com "Homem de Ferro", ambos de 2008, a dominação foi executada à perfeição.

Não que o cinema não tivesse sua cota de personagens de gibi traduzidos para as telas, como eu mesmo apontei em uma radiografia dos heróis de papel traduzidos para as telas na década de 1990. Mas nunca antes os produtores dependeram tanto de criações dos quadrinhos para alimentar sua programação.

E nem falo de pesos pesados como "Mulher-Maravilha 1984, "Viúva Negra" ou "The Batman": partindo de obras em quadrinhos, o streaming estreou há poucas semanas um filme ("The Old Guard"), duas séries ganharam novas temporadas ("The Umbrella Academy" e "The Boys") e uma minissérie ("Watchmen") foi o programa com mais indicações ao Emmy.

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'Watchmen' tornou-se sucesso de crítica pela HBO
Imagem: HBO

Obviamente que a Marvel e a DC jamais abrirão mão de suas propriedades intelectuais, bens valiosos que rendem bilhões aos cofres. Por outro lado, é evidente que o esforço para manter este lado do negócio ativo, ironicamente o marco zero de muitos produtos de sucesso, é mínimo.

Uma solução inteligente seria simplesmente licenciar seus personagens para editoras que não fazem parte de grandes conglomerados e ainda apostam nas histórias em quadrinhos como seu foco principal. Basta traçar uma "bíblia" para os "locatários" e bingo! A Disney já opera dessa forma com seus personagens tradicionais: os gibis com Mickey, Donald e cia. hoje são produzidos pela independente IDW.

Não seria absurdo, portanto, que a Marvel entregasse seus personagens nos gibis para uma empresa como a Image Comics, hoje a melhor editora de quadrinhos nos Estados Unidos. Haveria a preocupação em contratar as melhores equipes criativas para desenvolver histórias em arcos fechados, colecionados posteriormente em encadernados - que é o que realmente vende. E não atrapalharia a construção de universos compartilhados em cinema, streaming, games ou tudo junto e misturado.

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Recorte de 'X-Men: Great Design', de Ed Piskor
Imagem: Marvel

O problema principal da publicação ininterrupta como existe hoje é a fadiga. É tarefa quase impossível manter personagens como o Homem-Aranha interessantes e surpreendentes quando suas histórias são publicadas continuamente há quase sessenta anos. O Demolidor recentemente ganhou uma série de histórias que giram em torno, mais uma vez, de uma crise de fé de Matt Murdock, incerto que continuará como o herói. O velho é o novo e o ciclo se perpetua.

Não é ao acaso que os gibis mais empolgantes produzidos atualmente pelas duas editoras sejam edições especiais e minisséries fora da cronologia normal. "X-Men: Grand Design", por exemplo, reorganizou a cronologia dos mutantes nos quadrinhos em um trabalho espetacular do ilustrador e quadrinista Ed Piskor, que até então nunca havia trabalhado com super-heróis.

Licenciar seus personagens é, inclusive, prática corriqueira para empresas como Marvel e DC. É o que acontece com seus videogames e com sua linha de colecionáveis, em que terceiros assumem o leme e entregam, não raro, um produto mais bem acabado. "Spider-Man", jogo para o PlayStation 4, trouxe um roteiro mais empolgante do que tudo feito nos gibis do Aranha em anos.

Marvel DC spider-man ps4 - Sony - Sony
O espetacular 'Spider-Man', videogame para o PlayStation 4
Imagem: Sony

A ideia de entregar sua galinha dos ovos de ouro a terceiros, porém, parece um sonho distante. Grandes conglomerados de mídia buscam resultados, o que muitas vezes desestimula ousadia e criatividade. Manter seus heróis ativos para alimentar outros departamentos pode parecer uma solução preguiçosa, mas trazer novos leitores não é prioridade: vender filmes como "Os Eternos" ou "Novos Deuses", massificando personagens conhecidos unicamente no nicho, faz mais sentido comercial.

Os fãs de quadrinhos? Estes agarram-se em tudo que conseguem, às vezes mantendo a tradição de comprar os gibis de seus heróis favoritos por a) puro colecionismo e b) pela esperança de que alguma equipe criativa produza com mais frequência aquele brilho criativo que os capturou em primeiro lugar.

Enquanto as coisas continuam as mesmas, celebramos astros do cinema e da TV, diretores, produtores e desenvolvedores de games em eventos enfeitados com os heróis que um dia existiam basicamente nos gibis. Novos fãs serão formados e novos produtos em diversas mídias manterão o barco flutuando. E as histórias em quadrinhos, que começaram e ainda alimentam todo esse movimento, contentam-se com um lugar na última fileira.