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Roberto Sadovski

Por que Mad Max: Estrada da Fúria ainda é o filme mais relevante desde 2015

Tom Hardy em "Mad Max: Estrada da Fúria" - Warner
Tom Hardy em 'Mad Max: Estrada da Fúria' Imagem: Warner

Colunista do UOL

18/05/2020 06h13

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"Eu revi 'Mad Max: Estrada da Fúria novamente semana passada, e te garanto que não conseguiria dirigir 30 segundos daquilo. Eu não entendo como George Miller conseguiu, de verdade, e é meu trabalho entender. Eu não entendo duas coisas: como é que eles não estão rodando o filme até hoje e como é que centenas de pessoas não morreram."

Era 2017 e Steven Soderbergh, diretor que levou um Oscar por "Traffic", responsável por filmes que vão do experimental ("Full Frontal", "Unsane") ao produto de estúdio ("Contágio", a trilogia "Onze Homens e Um Segredo"), ainda estava louvando "Mad Max: Estrada da Fúria", lançado dois anos antes. E o assunto, em um papo com o Hollywood Reporter, sequer era o filme, e sim seu próprio "Logan Lucky".

Mas esse foi o efeito que a obra-prima de George Miller teve no cinema. Em seus pares (de Quentin Tarantino a Bong Joon-Ho a Edgard Wright, existe uma coleção de cineastas ainda recolhendo seus queixos do chão). Em críticos ("Estrada da Fúria" surgiu no topo de dúzias de listas de melhores filmes da década, inclusive na minha). E com o público, que coroou a aventura com 375 milhões de dólares nas bilheterias mundiais.

"Estrada da Fúria" voltou a ser notícia há poucos dias, quando o filme cravou cinco anos de sua estreia nos Estados Unidos, em 15 de maio de 2015. George Miller voltou a falar de um spin off, "Furiosa", concentrado nos anos de formação da personagem de Charlize Theron.

mad max furiosa - Warner - Warner
Charlize Theron como Furiosa em 'Mad Max: Estrada da Fúria'
Imagem: Warner

Infelizmente, a própria Charlize estaria ausente dessa nova aventura por ela ser ambientada na juventude da guerreira, exigindo uma atriz mais jovem. De certa forma, a estrela sul-africana ganhou ainda mais destaque com sua coleção de registros, fotos e vídeos, capturados durante a produção, que ela espalhou em sua conta no Twitter.

Foi uma maneira brilhante de ilustrar as lembranças dos envolvidos na produção de "Mad Max: Estrada da Fúria". O filme materializou-se como nada que Hollywood já tivesse imaginado antes. O roteiro não seguir um padrão formal, e sim uma série de storyboards que costurada uma longa cena de perseguição.

CHUVAS TORRENCIAIS E FLORES

Sem falar que foi um projeto nascido da frustração e da urgência. Depois de fazer três "Mad Max" com Mel Gibson nos anos 80, George Miller não enxergava mais histórias com seu personagem. Até que teve uma visão ao final dos anos 90 em que Max protegia um MacGuffin diferente - cinco escravas sexuais - em uma sequência de perseguição gigantesca.

A produção começaria em 2003 na Austrália, mas os ataques terroristas em Nova York em 11 de setembro de 2001 fizeram com que a logística de transportar todos os veículos planejados para o filme se tornasse impraticável. A essa altura, Mel Gibson ainda estava envolvido com o projeto, mas sua idade, e o fato de Hollywood lhe ter virado as costas, o colocaram fora da produção.

As filmagens finalmente foram agendadas para o fim de 2010 no mesmo deserto australiano em que Miller filmara outras duas aventuras de Max Rockatansky. Mas o destino tem senso de humor ácido, e o país experimentou uma temporada de chuvas torrenciais, um fenômeno que acontece a cada século. O que era deserto se tornou savana coberta de flores. Um ano depois, a produção mudou-se para a Namíbia.

Nesse estágio, Tom Hardy havia sido escolhido para o papel de Max, com Charlize Theron assumindo a destemida Furiosa e cinco atrizes, incluindo algumas com zero experiência dramática, acompanhando a dupla como as "esposas" de um déspota, Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), resgatadas e em fuga.

Vale ressaltar aqui que não foi uma filmagem de três meses com trailers e um centro urbano à disposição para relaxar. Por nove meses, uma gestação completa, elenco e equipe ficaram confinados no deserto da Namíbia, no que pode ser descrito como uma verdadeira operação de guerra.

Até porque quase tudo que você vê no filme é real. Miller usou um mínimo de efeitos digitais, optando em capturar o caos maravilhoso de veículos de guerra em disparada pelo deserto, com pilotos e dublês executando a visão meticulosa do diretor. Os atores, sem conseguir decifrar a magnitude da operação deflagrada por Miller, geralmente se tornaram frustrados e arredios. A tensão no set é traduzida em cena. O mundo para eles de fato era fogo e sangue.

RESPEITANDO AS LEIS DA FÍSICA

Quando "Mad Max: Estrada da Fúria" finalmente foi apresentado ao mundo no Festival de Cannes em 2015, superando inclusive a ameaça de um dos executivos do estúdio em bloquear o orçamento e impedir a filmagem das cenas na cidadela de Immortan - que abre e fecha o filme - todos, inclusive Hardy e Charlize, não tinham palavras a George Miller menos intensas que "gênio".

De lá até agora, nenhum filme lançado nos cinemas (ou em qualquer outra plataforma) alcançou a maestria de "Mad Max: Estrada da Fúria". Não é culpa dos filmes ou de seus realizadores. As ferramentas para criar histórias em celuloide hoje (mesmo que sejam digitais, mas me deixa com a licença poética) deixam os recortes narrativos mais, digamos, seguros.

Não há realmente senso de perigo em ver super-heróis salvando o mundo, embora seja absolutamente incrível como experiência cinematográfica coletiva. É difícil sentir alguma tensão quando astros "desafiam a morte" em ambientes que não raro desafiam as leis da física. O cérebro registra que aquilo é divertido, mas não poderia ser real.

"Estrada da Fúria", por sua vez, joga o padrão no lixo com um filme que realmente parece perigoso, com riscos verdadeiros traduzidos em sequências que, como reafirmou Soderbergh, deveriam "causar a morte de centenas". Essa incerteza permeia a performance de cada ator em cena, que por suas vez constroem suas verdades em pequenos momentos. É operático, mas também é profundamente intimista.

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Caos acelerado em 'Mad Max: Estrada da Fúria'
Imagem: Warner

Em 2020, rever "Mad Max: Estrada da Fúria" é também uma experiência premonitória. O mundo encontra-se em um estado caótico considerado imprevisível anos atrás (mas não digam isso a Barack Obama, que sugeriu o surgimento de uma pandemia e que todos tinham de estar preparados).

A trama é de simplicidade franciscana: Max precisa sair do ponto A, foge para o ponto B e precisa retornar, modificado pela experiência, ao lugar de partida. Nas entrelinhas, temas ainda mais relevantes ao mundo de hoje, como empoderamento feminino, choque brutal de classes sociais e um colapso ambiental. E uma lição: o mundo vai para o vinagre por culpa unicamente nossa.

UM MESSIAS QUE SÓ BUSCA O PODER

"Quem quebrou o mundo?" é a questão central de "Estrada da Fúria", repetida algumas vezes ao longo da aventura. A resposta é fácil e ganha novos contornos com a pandemia global, a necessidade para isolamento, única medida capaz de frear a curva do contágio para um vírus que ainda não tem cura, e irresponsáveis em todo o mundo que agem com zero preocupação com o coletivo, preocupados unicamente com o próprio umbigo.

Ou com o umbigo de seu líder. Porque seja um cidadão comum, seja um governante (não me atrevi a usar "estadista" aqui), todos que agem contra o coletivo tem culpa de a ameaça do coronavírus ser ainda maior. "Quem quebrou o mundo?" Os donos do poder e aqueles que os seguem cegamente. Immortan Joe, afinal, vende-se como o messias que promete a libertação, mas na verdade age apenas para perpetuar seu poder. Lembra alguém?

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O messias louco Immortan Joe em 'Mad Max: Estrada da Fúria'
Imagem: Warner

Rever "Mad Max: Estrada da Fúria" com olhos de 2020 eleva ainda mais a experiência, e reafirma sua posição como clássico moderno. Como um filme que mudou de fato as regras de como perceber o cinema, uma obra que ainda inspira qualquer um que, um dia, almejou se tornar um contador de histórias usando imagem e som como ferramenta.

Mas não é, veja bem, para qualquer um. Steven Soderbergh, veterano nesse jogo, foi o primeiro a dizer que não se atreveria. "Eu garanto que mesmo as pouquíssimas pessoas que estão nesse mesmo nível choraram sangue ao assistir a 'Estrada da Fúria'", disparou o diretor. "O lance com George Miller não é nem só isso, é tudo que ele faz, e tudo é excepcional."

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Furiosa descobre seu mundo estilhaçado em 'Mad Max: Estrada da Fúria'
Imagem: Warner