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Roberto Sadovski

Karim Aïnouz: 'Você já imaginou a quarentena sem streaming?'

Colunista do UOL

15/05/2020 03h46

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Karim Aïnouz é um dos cineastas mais prolíficos do Brasil. Ano passado ele estava em cartaz com o belíssimo "A Vida Invisível", que representou o país entre os candidatos a uma vaga pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. Agora ele lança o documentário "Aeroporto Central", disponibilizado via streaming.

Não era exatamente o plano. Aïnouz imaginava um lançamento nos cinemas, oferecendo uma experiência delicada e impactante, ainda que coletiva, para o filme. A pandemia do coronavírus, porém, alterou essa ideia, colocando o filme diretamente em plataformas digitais.

Terminou que, dessa forma, "Aeroporto Central" ganhou outro tipo de ressonância. A história de refugiados vivendo no aeroporto histórico no coração de Berlim ganhou um estranho paralelo com pessoas, em todo o mundo, confinadas em suas caras, obedecendo ao isolamento para mitigar a contaminação para um vírus que ainda não possui cura.

É sobre "Aeroporto Central", isolamento e os paralelos das medidas federais no Brasil e na Alemanha, onde mora o diretor, que eu e Karim batemos um papo bacana. Que você confere a seguir - ou em vídeo!

'Aeroporto Central', dirigido por Karim Aïnouz - Divulgação - Divulgação
'Aeroporto Central', dirigido por Karim Aïnouz
Imagem: Divulgação

Você está com um filme novo, "Aeroporto Central", um documentário ambientado no aeroporto central de Berlim que foi modificado para receber refugiados. É isso, Karim?
Foi, é um aeroporto que tem uma história bastante curiosa. Ele fica bem no centro da cidade e foi construído na década de 30 e foi um prédio muito importante na época do nazismo. Um aeroporto militar, então você imagina a história que esse lugar tem. Depois da guerra ele virou um aeroporto civil que funcionou até 2008. É um pouco o Congonhas daqui, um aeroporto menor. Ele foi desativado e as pistas de pouso viraram um parque e os hangares viraram espaços expositivos.

Em 2015, com o influxo grande de pessoas que estavam fugindo de guerras no Oriente Médio e pedindo asilo na Alemanha, vários espaços tiveram de ser transformados em abrigos, e um desses espaços foi o hangar do aeroporto, transformados para abrigar refugiados que estavam chegando e tentando conseguir asilo aqui na Alemanha. Então você vê que é um aeroporto com uma história meio irônica, porque esses hangares inicialmente construídos para se consertar grandes aviões de guerra viraram de repente abrigos para pessoas que estavam fugindo de uma guerra no outro continente.

Existe um simbolismo muito grande nisso, porque Hitler queria que fosse o maior e o melhor aeroporto do mundo. E tem um simbolismo que você captura em suas imagens, porque a arquitetura do aeroporto, e o modo como você posiciona a câmera, quase como um observador passivo. Como foi, nesse ano que você filmou, fazer parte da vida de algumas pessoas que você selecionou para ser seus personagens, ao mesmo tempo sendo invisível?
Rapaz, é tão curioso, porque no começo não existia uma relação assim, ninguém queria ser filmado, ninguém queria uma câmera ali dentro. O que eu absolutamente entendo, um espaço que não é para ninguém morar, um hangar com umas cabines, pessoas tinham de sair para ir ao banheiro. Então era um espaço muito íntimo, ao mesmo tempo quase degradante para ser filmado. Eu achava que era muito importante registrar aquilo, quase como um documento histórico. Fiquei indo muito lá, achando que não ia conseguir filmar, e num determinado momento eu achei que ia fazer algo escrito.

A maneira que eu escrevo é com a câmera, mas já que não posso vou usar uma caneta e vou contar a crônica desse lugar. Só que depois de seis meses, as pessoas começaram a se acostumar comigo, a equipe eram três pessoas. Então a gente começou, não a fazer parte, por que não seria verdade, a gente teria de dormir lá. A gente saia e voltava. Mas a gente ficou conhecido, a gente conheceu muita gente, eu troquei muito, ouvi muito as pessoas. E quando foi seis meses depois que a gente começou a ir. Eu, né, com a equipe que levei em julho de 2016.

E a gente ficou realmente invisível, porque ficamos um ano indo todo mês, e passávamos três, quatro, cinco dias ali dentro filmando. Era eu, o fotógrafo e uma produtora. No começo existia uma tensão, ninguém queria saber da câmera, achavam que a gente era uma equipe de televisão, e tinham uma reação grande, uma reação não positiva. Aos poucos fomos acostumando, inclusive passamos o Natal lá, o ano novo. Quando se tem uma câmera é igual a criança. Quando você bota uma câmera elas ficam pulando e depois se acostuma e ninguém está mais nem vendo aquilo ali. Foi de um lado isso, do outro lado uma relação de confiança que a gente estabeleceu. Estávamos filmando e viram que não era para fazer uma matéria e sair. Era de fato um documento da vida deles e a história daquele lugar durante um tempo mais longo.

Eu achei curioso que ao longo do filme você vê um sentimento de camaradagem brotando. Um precisa ajudar o outro, dar uma direção a quem chega na Alemanha. E é curioso seu filme estar sendo lançado aqui agora nesse momento em que todo mundo talvez esteja tentando se unir mais nessa camaradagem. Parece que a gente tem esse sentimento não de refugiados, mas de não ter uma âncora. Você enxerga algum paralelo desse trabalho que você fez há três, quatro anos com o que a gente está vivendo hoje no mundo?
É curioso. Quando a gente fez esse filme, a gente terminou as filmagens em 2017 e concluímos o filme em 2018. Então você imagina que faz muito tempo! É uma questão que eu acho que é muito dos países ricos. Claro que existem imigrantes no mundo inteiro, um afluo grande. Eu fiz o filme porque achava que era um tema muito relevante e quando foi a hora de lançar no Brasil a gente não lançou, isso em 2018.

A gente foi lançar agora, e eu tive muita dúvida com a coisa da pandemia... se lança, não pode, não pode lançar nas salas. E num determinado momento a gente falou, vamos lançar em streaming. E eu nunca lancei um filme em streaming, tinha um certo preconceito, e eu acho que foi uma decisão muito acertada. De fato, se o filme, se eu imaginei que ele não tinha relevância, agora é o contrário, ele meio que tem uma relevância enorme. São pessoas que estão meio confinadas num lugar onde elas não estariam morando, sem saber o que vai ser o futuro delas, porque elas não tem a menor ideia do que vai acontecer na vida delas, é o governo alemão quem decide se elas vão poder ficar aqui, se elas vão ter de voltar para o lugar de onde vieram, na guerra.

Então tem uma certa lição de humildade também para as pessoas que estão vendo, tentando esperar e sabendo que não tem controle sobre seu futuro, mas com alguma esperança. E como você falou, é um tema muito importante que é a solidariedade. Está todo mundo na mesma! Todo mundo tentando começar a vida de novo. Acho que existem grandes diferenças entre o filme e o que a gente está vivendo no Brasil e no mundo hoje mas existem enormes semelhanças. Inclusive o fato de você ver o filme em casa, ver o filme no teu confinamento. Ele está ecoando de maneira que eu nunca imaginei com a maneira como a gente está vivendo hoje.

Karim, a gente está com os cinemas fechados no mundo todo. Eu li que existe um plano da associação de cinemas nos Estados Unidos para tentar reabrir em junho e voltar full em julho, o que eu achei muito otimista. E foi interessante você falar agora em ter um certo preconceito do filme ir para streaming, e de repente a Academia vai liberar os filme sem streaming para concorrer ao Oscar. Como que você enxerga esse momento que a gente vai retomar a nossa rotina em algum momento no futuro, para a indústria do cinema, tanto de produção quanto de exibição?
Cara, pode ser que eu esteja completamente enganado, pode ser que a gente se fale daqui a um ano e você fale 'Karim, você tava louco!'. Mas eu acho que não tem sentido abrir sala de cinema em julho. Vai abrir sala de cinema quando tiver vacina! E isso não vai acontecer por mais um ano, um ano e meio. Mas a sensação que eu tenho é que, quando abrir, vai ser a idade de ouro do cinema. E vai ser a idade de ouro do cinema de sala! Imagine se amanhã tem vacina e você pode ir ao cinema, eu iria correndo! Tá se criando uma situação que é a gente não poder ir e...

Você sabe o que aconteceu aqui na Alemanha, que tá acontecendo em outros países, é o boom do drive-in. Os drive-ins estão explodindo! Não faz sentido? Estamos sem sair de casa. Então os drive-ins estão sendo reativados, é uma boa dica pra quem não tem drive-in no Brasil! Vai encher de gente que está fazendo aquelas carreatas, esse é o problema... Mas vamos voltar para o que a gente está falando! (risos) Falando sério, não vai ter sentido reabrir nada agora. A sensação que eu tenho é que o mundo entendeu quão importante são as histórias que a gente conta no cinema. Tu já imaginou essa quarentena sem streaming? Seria uma loucura, a gente estaria doido aqui!

O papel do cinema enquanto uma arte que conta histórias, que permite que a gente viaje para outros lugares sem viajar. É realmente necessário. E a outra coisa que eu acho é que, quando abrirem as salas de cinema, quando a gente puder de fato voltar, vai ser uma enxurrada de gente no cinema. A gente tem que aproveitar esse tempo agora e preparar as histórias que a gente tem de filmar para contar quando os cinemas forem reabertos. Eu sou muito otimista com relação a isso.

'Aeroporto Central', dirigido por Karim Aïnouz 2 - Divulgação - Divulgação
'Aeroporto Central', dirigido por Karim Aïnouz
Imagem: Divulgação

Tem um fluxo de produção que também precisa acontecer... Escrevendo as histórias quando estamos em casa.
Exatamente.

Quando puder voltar a filmar todo mundo volta a trabalhar.
Eu acho.

E você está em Berlim, e a chanceler Angela Merkel teve uma reação muito veloz quando a pandemia foi decretada. Ainda assim, parece que quando relaxaram as regras teve uma volta do contágio do vírus, mesmo com todas as medidas em Berlim.
Teve, isso mesmo.

Você tem falado com a sua família, seus amigos aqui no Brasil... Como que está você, uma pessoa de dois mundos, lidando com esse momento em Berlim e observando a gente aqui no Brasil?
De um lado em me sinto muito privilegiado. Você imagina que a gente está numa situação aqui que temos uma primeira-ministra que não só entende de solidariedade, mas ela é filha de um bispo, então ela entende realmente o que é o outro, além de ela ter uma visão do coletivo que é impressionante. A maneira como isso foi gerenciado é inacreditável, então você circula pela cidade, e claro que não é uma cidade muito populosa, e é um privilégio gigante estar vivendo aqui.

Com a abertura das coisas semana passada subiu o índice de contaminação, então deve fechar de novo. Mas existe um gerenciamento muito corpo a corpo, muito presente, hoje tiveram uma reunião para decidir como vai ser semana que vem. Quando eu falo com meus familiares no Brasil é de cortar o coração. E olhe que são pessoas que tem para onde voltar, tem casa, podem ficar em casa. E quem não tem casa? Quem mora com vinte pessoas? Então para mim, ao mesmo tempo que é um privilégio, é muito duro, é dilacerante.

Eu falei com uma tia minha ontem, e ela escreveu meio se despedindo. Ela é idosa, entende? Pode ser que ela continue, pode ser que ela consiga. Mas a aflição dela de estar numa situação em que ela sente que as coisas não estão sob controle... E claro que as coisas não estão sob controle no geral. Mas o que está acontecendo no Brasil é muito sério. Realmente eu fico muito aflito e tentando entender um pouco como é que a gente pode, além de dividir o que a gente tem, que a gente tem obrigação de fazer isso agora, como é que ativamente a gente pode ajudar para que as coisas tenham um outro rumo. É muito sério. Eu não quero exagerar, mas eu acho que a gente está prestes a uma situação gravíssima no sentido humano no Brasil.