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Roberto Sadovski

"O Poço" é cinema trash nada sutil, genérico e totalmente descartável

Prisioneiros em "O Poço", filme trash da Netflix - Netflix
Prisioneiros em "O Poço", filme trash da Netflix Imagem: Netflix

Colunista do UOL

30/03/2020 02h24

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A quarentena tem algumas consequências curiosas. Uma delas é o sucesso de "O Poço", um survival horror sangrento, com pitadas de comentário social, que se tornou um dos assuntos da vez entre a turma entediada no sofá e um dos filmes mais assistidos da Netflix nativa.

Curioso porque o filme do estreante Galder Gaztelu-Urrutia é daqueles prazeres culpados que pareciam sepultados desde o auge do VHS. Um filme podreira que aposta no gore para disfarçar os valores de produção baixos e a trama simplória. É divertido. E é bem ruim.

A história é um primor da ficção científica trash. Em uma distopia nunca identificada, uma prisão vertical traz uma cela a cada nível, com dois prisioneiros dividindo o mesmo espaço. Todos os dias uma plataforma com comida para todos desce pelo vão central, parando por dois minutos em cada nível - o único momento em que todos podem se alimentar.

maitre em O Poço - Netflix - Netflix
O maître supervisiona o banquete em "O Poço"
Imagem: Netflix

Aí é a pegadinha. Quanto mais baixo o prisioneiro se encontra, menos comida sobra na plataforma. Um detento, que se voluntariou por seis meses para conseguir um diploma (!), aprende da pior maneira as lições de diferenças de classes sociais: quem está acima não deve satisfações a quem está embaixo. Logo a situação torna-se insustentável e, claro, explode em violência.

O comentário social em "O Poço", raso feito um pires, é comum no survival horror. É, na verdade, um verniz que sugere alguma profundidade ao roteiro, observado desde as produções mais pobretonas (como o cultuado "Cubo") até candidatos a blockbuster (a série "Maze Runner"). São variações do mesmo tema, com o "sistema" malvadão oprimindo o "cidadão comum" até surgir alguém mais esperto capaz de driblar as regras.

Talvez essa linha narrativa genérica tenha se mostrado particularmente atraente em tempos de quarentena e isolamento social. "O Poço" condensa a questão da luta de classes com sutileza de escavadeira e retórica ginasial.

A administração do lugar é representada por um maître que coordena a preparação de banquetes nababescos, içados com certa crueldade aos prisioneiros. Uma personagem, antes parte dessa mesma administração, desce como voluntária às celas e tenta conscientizar a turma do alto que, se comerem menos, sobra alimento para todos. Nosso herói termina sendo o sujeito de valores morais "contaminado" pela opressão.

banquete em o poço - Netflix - Netflix
Eis o banquete já meio zoado em "O Poço"
Imagem: Netflix

Tudo, claro, com zero profundidade. Filmes como "O Poço", que começou sua jornada como midnight movie no Festival de Toronto antes de ser comprado pela Netflix, tem como principal atrativo os litros de sangue despejados em cena, acompanhados da ultraviolência habitual.

E nesse departamento Gaztelu-Urrutia não decepciona. São corpos carbonizados, decapitações, canibalismo, suicídio, crânios esfacelados e entranhas espalhadas. O objetivo aqui não é provocar uma reflexão (até porque o roteiro sem o menor sentido não tem gordura para tanto), e sim trazer catarse pela violência, exatamente como seus pares nas fitas em VHS empoeiradas.

Para a Netflix, é um negócio e tanto. A plataforma de streaming funciona hoje exatamente como uma locadora nos gloriosos anos 80. Para cada obra-prima como "O Irlandês" ou "Jóias Brutas", somos brindados com dúzias de filmes de terror e ficção científica baratos e de qualidade duvidosa.

É a mesma estratégia das produtoras que alimentavam o mercado de VHS: produzir muito e produzir rápido para ter volume. No meio da bagunça, um ou outro filme se destaca. É bom para estimular a produção e para formar novos talentos. E terror, ao contrário de outros gêneros, roda o mundo - mesmo quando é tosco como "O Poço".