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Dia da Língua, Antonio Candido e a 'escrotização' oficial do Português

Antonio Candido. - Guilherme Maranhão/ Itaú Cultural.
Antonio Candido. Imagem: Guilherme Maranhão/ Itaú Cultural.

Colunista do UOL

05/05/2020 09h17

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Hoje é o Dia Mundial da Língua Portuguesa, data que faz parte do calendário da Unesco desde o ano passado. Num gesto pouco ousado, puxo a sardinha ainda mais pro meu lado. Falar de língua é falar também de literatura. E, nesses dias tão estranhos, tenho pensado com frequência num cara: Antonio Candido, o grande crítico literário, um dos maiores que este país já teve (não brigo com quem apontá-lo como o maior), cuja morte completa três anos no próximo dia 12, terça que vem.

Antonio Candido não apenas enxergava a beleza, mas botava muita fé no poder das palavras. Seu ensaio "O Direito à Literatura", publicado em 1988, é obrigatório. Por lá encontramos momentos como este: "Sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. Penso que o movimento pelos direitos humanos se encontra aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade".

A barbárie de hoje já é diferente daquela pintada por Candido; traços civilizatórios andam definitivamente em baixa por aqui, enquanto demonstrações de estupidez, desprezo e truculência fazem sucesso entre muitos. Meter o pau nos direitos humanos, por sua vez, pega bem em certos grupos. Homem de boa vontade virou uma autodefinição utilizada por quem fala em matar e se permite espancar os outros em nome sabe-se lá do quê - ou sabemos bem de quem. Mas voltemos à literatura e ao ensaio do mestre.

Para o texto, Candido considerou literatura todas as criações que tivessem algum tipo de toque poético, ficcional ou dramático, desde lendas e piadas até clássicos de Machado de Assis ou Camões, para seguirmos com baluartes da língua hoje celebrada. O crítico botava fé na literatura porque, defendia, é uma arte que nos faz viver, nos coloca em contato com traços "que reputamos essenciais", nos faz refletir, demonstra dialeticamente os problemas, aprimora a percepção da complexidade do mundo, afina emoções, cria empatia, aguça o senso de beleza...

Antonio Candido. - Divulgação. - Divulgação.
Imagem: Divulgação.
"A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante", confiava o crítico otimista. Para defender que o pleno acesso à literatura deveria ser um direito garantido a todo ser humano, Candido partia do pressuposto de que tudo aquilo que é indispensável para nós também é indispensável para o próximo.

Afasto-me um pouco do conterrâneo e da nossa língua. Em "O Fascismo Eterno" (Record), outro texto incontornável para nossos dias, o italiano Umberto Eco se apoiou num conceito criado pelo britânico George Orwell para identificar um dos pontos que evidenciam movimentos fascistas. Segundo o autor de "O Nome da Rosa", a Novilíngua, idioma criado pelos brucutus de "1984", clássico orwelliano, é um grande exemplo de como os governos de tendência fascista buscam se basear num "léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico".

É exatamente o oposto daquilo que Antonio Candido defendia ao erguer a bandeira da literatura como um direito básico de qualquer ser humano. Também não é difícil constatar que o Brasil tem seguido um caminho mais parecido com as trevas alertadas por Eco do que com a utopia imaginada por Candido. Ou alguém há de negar que um dos mais altos poderes da República anda, literalmente, escrotizando a língua portuguesa?

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