Nem mocinha, nem vilã, Isis Valverde é a grande atriz de A Força do Querer
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Glória Perez conseguiu um feito e tanto com "A Força do Querer": surpreendeu a nação com o óbvio. E digo isso como elogio, sem qualquer tipo de conotação negativa. A manobra mais difícil de se executar em um produto com pretensões tão populares quanto uma novela das 21h na Globo é justamente conseguir entregar uma fórmula surrada com o lustroso verniz das novidades.
Muitos se perderam no afã de renovar o gênero e deixaram a coisa toda meio rococó. Creio que a trajetória de João Emanuel Carneiro seja exemplar nesse sentido. Depois de comover a audiência com "Avenida Brasil", folhetim puro e muito bem executado, tentou subverter demais com "A Regra do Jogo", que frustrou praticamente todas as expectativas. Eis que Glória Perez conseguiu equilibrar as estruturas mais seguras da narrativa como contraponto a personagens com diversas camadas que o público de novela não está acostumado a prestigiar.
Filho rejeitado pelos pais é um clássico, por exemplo. Mas a abordagem do núcleo liderado por Ivan ajudou a expandir a discussão sobre sexualidade de forma contemporânea e relevante. A mulher enganada pelo marido também não chega a ser uma revolução. Ao enquadrar esse clichê na trajetória de uma personagem como Bibi Perigosa, tudo muda de figura.
O público está acostumado a ver em novela o cidadão fingindo que tem serão na firma para trair a esposa. É rigorosamente a mesma equação, mas dessa vez tivemos um cara escondendo da família que era traficante de drogas, com tudo revelado por conta da prisão. E só bem depois chegou a história da amante. Foi uma sequência de traições, todas possibilitadas pelo rico contexto dentro de uma fórmula batida.
Mas creio que a maior ousadia de Glória Perez dessa vez tenha sido Ritinha. A personagem vivida por Isis Valverde não é mocinha nem vilã, embora transite com certa fluidez nesses dois lados da moeda. Apesar do universo multicolorido da sereia, é uma personagem cinza. E a atriz conseguiu andar sobre essa corda bamba com impressionante altivez.
Ritinha arruinou a vida de muita gente, mas todos os seus vacilos eram de uma coerência avassaladora. A busca pela própria felicidade, mesmo que passando por cima dos outros, conseguiu encantar e irritar em proporções muito parecidas. Mérito também de Valverde, em mais uma apresentação fascinante. Conseguiu passar de maneira genuína as questões propostas pela autora. Acredito que tenha sido seu melhor papel até aqui. Há quem diga que a carreira de Valverde é feita por personagens muito parecidos entre si. Pode até existir certa verdade nisso, mas não consigo enxergar como algo desabonador.
Chego a lembrar de uma passagem da biografia de Bertrand Russell, filósofo e matemático britânico. Conta-se que o rei George VI estava um tanto reticente quanto a oferecer uma condecoração de Ordem do Mérito em 1944. Parecia estranho dar tão alta honraria a um estudioso irreverente e sarcástico, conhecido pelas posições democráticas e antimilitaristas.
Na cerimônia, o rei foi desagradável como apenas monarcas podiam ser. Falou o seguinte para o filósofo: “O senhor se comporta por vezes de um modo que, se adotado de forma geral, seria altamente inconveniente.” E Bertrand respondeu o que nos faz chegar em minha opinião sobre o desempenho de Isis Valverde ao longo de sua carreira em novelas: “O modo como uma pessoa se comporta tem a ver com a sua missão. Cabe a um carteiro, por exemplo, bater às portas de todas as casas de uma rua em que ele tem cartas para entregar. Se porém qualquer outra pessoa se pusesse a bater em todas as portas, ela seria considerada um transtorno para a ordem pública.”
Assim como Ritinha, a atriz vem cumprindo sua missão com louvor. São papéis que poderiam facilmente ser vistos como repulsivos - ou transtornos para a ordem pública, como diria Russel. Com o talento de Isis e a delicadeza dos autores, somos convidados a entrar sorrateiramente na cabeça de pessoas que normalmente não entenderíamos direito.
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