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Mariani Ferreira, a cineasta gaúcha que 'jantou' colega após fala racista

Mariani Ferreira -  divulgação/telescópiofilmes
Mariani Ferreira Imagem: divulgação/telescópiofilmes

Colunista do UOL

08/07/2020 15h03

Se você chegou até aqui, deve ter ouvido falar em Mariani Ferreira, a cineasta gaúcha que rebateu uma fala racista durante uma live com colegas de profissão. Mas, para além dessa breve descrição, eu quis saber: quem é Mariani Ferreira? Mariani é filha da Elisabete e neta da Idalina, como ela gosta de destacar. E ela também se descreve assim:

Diretora, produtora, roteirista, militante no audiovisual, numa luta constante para deixar o audiovisual menos racista e mais preto, essa sou eu.

Bati um papo com a Mariani para saber mais sobre seu trabalho. Ela, que atualmente desenvolve um projeto sigiloso de ação e aventura na TV Globo, também foi uma das roteiristas de "Necrópolis", série brasileira que entrou para o catálogo da Netflix. Além disso, assina como produtora-executiva e roteirista o documentário "O Caso do Homem Errado". O filme estreou no Festival de Cinema de Gramado, em 2017, e é o segundo longa-metragem dirigido exclusivamente por uma mulher negra a estrear comercialmente no Brasil —se isso não te faz pensar, deveria.

É como ela mesma destaca:

Lançar um filme é muito difícil. É elitizado, burocrático. Sinto que, quando falamos sobre a segunda mulher negra a assinar um longa-metragem, se apaga um pouco da história de outras mulheres negras que vieram antes de mim. No Rio Grande do Sul [importante polo audiovisual do Brasil], então, é o primeiro longa assinado por uma mulher negra.

"O Caso do Homem Errado" conta a história do operário gaúcho Júlio César. Ele era negro. Ao ser confundido com um assaltante, Júlio foi executado pela Polícia Militar do Rio Grande do Sul, no dia 14 de maio de 1987. As conexões do filme são importantes para a discussão sobre racismo no Brasil —e a obra inclusive foi debatida no mesmo encontro em que a fala de Mariani, contra o racismo da participante Luciana Tomasi, reverberou.

É um projeto muito importante, e só conseguiu ser realizado porque a comunidade negra de Porto Alegre se reuniu. Não tivemos acesso a editais.

Como ela falou ali em cima, Mariani se identifica como uma ativista pela diversidade no mercado audiovisual. A cineasta, que participa do projeto Macumbaria Lab, sobre a participação negra no cinema e na TV, faz questão de ressaltar que a mudança da carreira de jornalista para a de roteirista se deu por conta de uma entrevista com o cineasta Jeferson De, que na época era jurado de um grande festival de cinema. Para ela, foi muito importante ver uma pessoa negra ocupando um lugar de autoridade e destaque.

Além de De, ela também aponta outras importantes referências negras: as cineastas Glenda Nicácio, de "Café com Canela", Renata Martins, Carol Rodrigues, Jaque Souza, Kaya Rodrigues (atriz), Juliana Balhego, Gautier Lee, Camila de Moraes. E, entre os homens, a galera da Filmes de Plástico, Gabriel Martins e André Novaes. Ela contou que adora ver "Atlanta", a premiada série de Donald Glover (o Childish Gambino) e brincou com o fato de um dos episódios parecer uma cena do filme "Corra!", de Jordan Peele, vencedor do Oscar de roteiro original.

Representatividade importa

Como ficou claro nos vídeos e prints que circularam, Mariani era a única realizadora negra na tal live, parte do projeto APTC ao Vivo, com profissionais que trabalharam no filme "Inverno", de 1983 —Mariani tem 32 anos e, portanto, é mais jovem do que a obra em questão.

Foram debatidos filmes importantes para o cinema gaúcho, inclusive o meu filme 'O Caso do Homem Errado'. Dentro do projeto, havia a ideia dos encontros de geração durante as discussões. O meu papel na live seria trazer esse olhar contemporâneo e, ao mesmo tempo, falar sobre o filme em si. Mas também 'atualizar' os discursos da obra.

Mas, como a própria Mariani frisa, ela "estava ali como roteirista nem era para trazer apenas a questão racial. Mas, quando tem uma pessoa negra presente, parece impossível não racializar o debate". E o problema vem de longe:

De todas as salas de roteiro em que trabalhei, só duas tinham pessoas negras. Uma era a sala em que eu era a chefe, era uma série de animação. É muito triste quando você está sozinho numa sala de roteiro. Por mais que as pessoas brancas que estejam lá sejam bem-intencionadas, rola uma solidão. Sala de roteiro é espaço de disputa de poder, você tem que ser uma excelente roteirista, ao mesmo tempo em que atua como consultora racial. Por isso, não contrate apenas um roteirista negro, você está criando criando um token. Contrate mais pessoas negras para que isso não aconteça.

Segundo a Wikipedia, "token" vem de "tokenismo", prática de fazer apenas um esforço superficial ou simbólico para ser inclusivo com membros de minorias, especialmente recrutando um pequeno número de pessoas de grupos sub-representados para dar a aparência de igualdade racial ou sexual dentro de uma força de trabalho. E a diversidade, nesses casos, é apenas superficial, e não efetiva.

#Repost @macumba_lab (@get_repost) ??? Pensar novas estrate?gias e formas de realizac?a?o na?o racistas e? de extrema importa?ncia. No Coletivo Macumba Lab, por exemplo, temos va?rios produtores e produtoras experientes em organizac?a?o de mostras e festivais que se preocupam com isso. Juliana Balhego ja? esta? na terceira edic?a?o da MOUC - Mostra de Cinema Universita?rio realizada na Sala Redenc?a?o; Thaise Machado realiza eventos importanti?ssimos para a cidade como a Segunda Negra e o Festival Porongos; Gautier Lee esta? organizando o Omnia Festival de Cinema e esta? desenvolvendo um pre?mio de roteiro; Sofia Ferreira participou da edic?a?o u?nica do Festival Democracine, fez parte da produc?a?o do Festival Internacional Porto Alegre Em Cena por 9 anos e concebeu e realizou o Ovo Festival Sonoro; Jeferson Silva e? curador da Mostra de Filmes Universita?rios do Festival de Cinema de Gramado e um dos realizadores do Sigma Cinema - uma mostra de filmes universita?rios e de Direitos Humanos. Esses sa?o apenas alguns exemplos de membros do coletivo e na?o somos os u?nicos. Existem diversos profissionais na a?rea que continuam invisibilizados pelo preconceito. Muitos outros profissionais pretos e pretas ve?m criando estrate?gias e pensando criac?a?o, exibic?a?o e distribuic?a?o de cinema em tempos de pandemia. Sa?o profissionais com muito a contribuir e trazer um prisma sobre o assunto para ale?m da visa?o da branca. Sera? que algum profissional negro ou trans recebeu convite para a mesa em questa?o? Uma ficha te?cnica que na?o tenha uma pessoa negra e? uma ficha que endossa o racismo. Isso vale para filmes, se?ries e eventos. Enta?o, caro colega do audiovisual, a pro?xima vez que for montar um evento ou uma equipe, fac?a o teste do pescoc?o, se na?o tiver nenhuma pessoa negra ou trans na mesa, na ficha, desconfie, algo esta? errado. (3/3) #MacumbaLab #pretosnocinema #artistaspretos #vidasnegrasimportam #tempretonosul #audiovisualpreto? #cinemapretogaucho #cinemabrasileiro #cinemagaucho

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Segundo a pesquisa Diversidade de Gênero e Raça no Mercado Audiovisual Brasileiro, da Ancine (Agência Nacional de Cinema), baseada nos 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016, homens brancos eram responsáveis por dirigir 75,4% desses filmes, enquanto mulheres brancas, 19,7%. Homens negros dirigiram 2,1% das obras, e nenhuma foi dirigida ou roteirizada por uma mulher negra.

Preocupante, né!?