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André Barcinski

Dez grandes canções de protesto e revolução

29.mai.2020 - Manifestantes ateiam fogo a uma loja em Minneapolis durante protesto pela morte de George Floyd - Craig Lassig/Efe
29.mai.2020 - Manifestantes ateiam fogo a uma loja em Minneapolis durante protesto pela morte de George Floyd Imagem: Craig Lassig/Efe

Colunista do UOL

02/06/2020 06h00

Resumo da notícia

  • Dez grandes canções - de Nina Simone, Neil Young, Adoniran Barbosa, Curtis Mayfield e outros - que desafiaram o sistema

As imagens de protestos nos Estados Unidos impressionam e remetem a cenas históricas de conflitos entre civis e a "lei". Fiz uma seleção de dez músicas que, de maneiras diversas, desafiaram o sistema e falam de causas sociais importantes.

É uma seleção pessoal. Deixei de fora nomes de peso da música politizada, como Public Enemy, Bob Dylan, Rage Against the Machine, Billy Bragg, The Clash, Dead Kennedys, Aretha Franklin, James Brown, Stevie Wonder e tantos outros.

Aqui vai minha seleção, sem ordem de preferência:

Sly and the Family Stone - Everyday People (1968)

Esta canção está tão à frente de seu tempo que é difícil acreditar que tenha sido lançada em 1968, um dos períodos mais violentos nos Estados Unidos, ano da morte de Martin Luther King e inúmeros conflitos raciais por todo o país. A canção tem um ingrediente raro em canções de protesto: o humor.

Sly and the Family Stone era uma banda integrada - negros, brancos, mulheres - e o tema da igualdade era muito importante para Sly Stone. A letra é inventiva e genial: Sly canta os versos mais "sérios": "Às vezes estou certo / e também posso estar errado / minhas crenças estão em minha canção / o açougueiro, o banqueiro, o baterista / não faz diferença em que grupo estou", enquanto a irmã, Rose, responde com versos quase infantis, em que zomba da estupidez de julgar o outro pela aparência: "Há um amarelo / que não aceita o preto / que não aceita o vermelho / que não aceita o branco". A letra cita ainda o desenho animado do "Scooby Doo", realçando o ridículo desse tipo de discussão. Uma obra-prima.

Neil Young & Crazy Horse - Powderfinger

Já ouvi essa música incontáveis vezes e até hoje não sei exatamente sobre o que ela fala. È justamente o mistério que a torna tão fascinante. A letra, narrada por um menino, descreve a chegada de um barco cheio de homens armados a uma casa na beira de um rio. Os "homens" da casa não estão (o pai "sumiu", o irmão mais velho está caçando, e outro adulto só bebe, "depois que o rio levou Emmy-Lou"), o que força o menino a confrontar o tal barco.

E o que seria esse barco? Sabemos, pela descrição, que é branco e "tem números do lado", o que leva a crer que seja "a lei". De toda forma, "Powderfinger" é sobre um conflito, e esse conflito não termina bem: "Me proteja da pólvora ("powder") / e do dedo ("finger") / Cubra-me com o pensamento que puxou o gatilho / pense em mim / como aquele que você nunca entendeu".

De Kalafe e a Turma - Guerra (1968)

Meu filme predileto é "O Despertar da Besta", de José Mojica Marins, um delírio sobre viciados em LSD que participam de um experimento médico envolvendo o personagem Zé do Caixão. É um dos filmes mais radicais já feitos, foi proibido pela Censura e praticamente acabou com a carreira de Mojica.

Em duas cenas capitais do filme - incluindo a antológica sequência do strip-tease e do pinico - Mojica usa esta música, composta por Arnaldo Saccomani (sim, o jurado do Ratinho) e cantada por De Kalafe, uma brasileira que vive no México desde meados dos anos 1970.

"Guerra" tem uma letra das mais tristes e pessimistas: "Paz, paz, paz / Eu sei não há mais / mas tento esquecer / que vamos morrer / morrer muito cedo / por causa de loucos / que eu sei não são poucos". Soa estranhamente profética em 2020, não?

Ry Cooder - Poor Man's Shangri-La (2005)

Ry Cooder é um de meus heróis. Famoso no mundo todo pelo disco "Buena Vista Social Club", que produziu junto a músicos cubanos desconhecidos fora da ilha, Cooder é um incansável pesquisador musical e já gravou com Ali Farka Touré, Taj Mahal, John Lee Hooker, Vishwan Mohan Bhatt, Bob Dylan e muitos outros.

Em 2005, Cooder lançou um disco lindo, "Chavez Ravine", uma espécie de ópera chicana sobre um bairro da comunidade latina de Los Angeles que, no fim dos anos 1940, foi destruído para a construção de casas populares. As tais casas nunca saíram do papel, mas o terreno acabou vendido para o time de beisebol dos Dodgers, que ali construiu seu estádio.

As canções contam a história de Chavez Ravine e sua destruição. Uma das músicas é narrada do ponto de vista do motorista de um trator que destrói as casas, enquanto outra relata a visão do piloto de uma nave extraterrestre que presencia a quebradeira. "Poor Man's Shangrila-La" dispensa explicações. O nome diz tudo.

Curtis Mayfield - Underground

Depois de largar o grupo vocal The Impressions em 1970, o cantor Curtis Mayfield embarcou numa carreira solo marcada por discos politizados e radicais. Um dos melhores é "Roots" (1971), considerado um clássico da soul music.

Em "Underground", Curtis parece descrever um futuro em que toda a humanidade viverá no "Subterrâneo", onde "Todos serão negros / então ninguém vai saber / e cor, crença e origem devem sumir /não haverá luz, portanto não haverá visão / e você julgará seu companheiro / pelo que é certo".

Curtis Mayfield tem uma das histórias mais tristes: em 1990, durante um concerto ao ar livre em Nova York, uma rajada de vento derrubou parte de uma torre de iluminação, atingindo Curtis na cabeça e deixando-o paraplégico. O cantor ainda lançou um último disco, em 1996, e morreu três anos depois, aos 57 anos.

The Philadelphia International All Stars / MFSB - Let's Clean Up the Ghetto

A Philadelphia International Records (PIR) é uma das gravadoras mais importantes da história da música negra. Formada em 1971 pela dupla Gamble & Huff - Kenny Gamble e Leon Huff, dois músicos veteranos que já atuavam na cena musical desde o início dos anos 60, incluindo trabalhos com Aretha Franklin e Dusty Springfield - a PIR ajudou a estabelecer o gênero que viria a ser chamado de disco, com músicas dançantes de produção sofisticada, sopros, cordas, vocais em reverb, percussão latina e um clima de celebração coletiva.

Além disso, muitas músicas da PIR traziam letras de protesto. Sob o verniz sofisticado e a elegância das canções, Gamble & Huff falavam da situação dos negros nos Estados Unidos. "Let's Clean Up the Ghetto", do Philadelphia International All Stars, é uma das letras mais raivosas já colocadas em cima de uma música tão bonita. A canção fala de uma greve de lixeiros em Nova York que deixou o "gueto" inundado em lixo e ratos.

A canção foi originalmente gravada para um disco do cantor Lou Rawls, mas destoava tanto das outras músicas de Rawls que a gravadora decidiu lançá-la num projeto beneficente para arrecadar dinheiro para comunidades pobres. E vários astros da PIR, como Billy Paul, Teddy Pendergass, The O'Jays, e Archie Bell foram chamados para abrilhantar o coro.

Wilson Simonal - Tributo a Martin Luther King (1967)

Não é incrível que o cantor mais patrulhado e perseguido da história do Brasil compôs (com Ronaldo Bôscoli) e gravou essa ode ao líder negro Martin Luther King? E detalhe: um ano antes do assassinato de King.

Anti-Nowhere League - Let's Break the Law (1982)

Eu poderia ter escolhido qualquer música de qualquer disco de Crass, Stiff Little Fingers, The Clash, Discharge, UK Subs, TSOL, Dead Kennedys ou qualquer banda punk/hardcore do período 1976/82, mas "Let's Break the Law" é um dos mais divertidos hinos da desobediência civil.

Adoniran Barbosa - Saudosa Maloca (1951)

Não existe letra mais triste: Adoniran lembra o dia em que ele e dois amigos, Matogrosso e Joca, foram expulsos da "maloca" onde moravam e obrigados a "apreciar a demolição" do prédio. E Joca diz, conformado: "Deus dá o frio conforme o cobertor".

Nina Simone - Backlash Blues (1967)

Difícil escolher uma música do repertório de Nina Simone, tantas e tão poderosas suas canções. Mas esta, gravada originalmente para o disco "Nina Simone Sings the Blues" e com letra adaptada de um poema do autor e ativista político Langston Hughes (amigo de Nina e que havia morrido pouco antes do lançamento do álbum), se destaca.

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PODCAST ÁLVARO & BARCINSKI & FORASTA & PAULÃO

Estreou esses dias um podcast que comecei a fazer com os amigos Álvaro Pereira Júnior, André Forastieri e Paulo Cesar Martin. Toda semana, vamos jogar conversa fora e dar dicas de discos, filmes e livros.

O primeiro episódio está aqui. E dá para achar em outras plataformas.

Uma ótima semana a todos.

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