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André Barcinski

Woody Allen: só os fatos, por favor

11.mai.2016 - Woody Allen divulga "Café Society" no Festival de Cannes -  REUTERS/Yves Herman
11.mai.2016 - Woody Allen divulga "Café Society" no Festival de Cannes Imagem: REUTERS/Yves Herman

Colunista do UOL

05/05/2020 04h00

Nos últimos tempos, não tem sido fácil escrever qualquer coisa sobre Woody Allen. A menor menção ao nome do cineasta é geralmente recebida com pedradas e xingamentos.

O motivo, claro, é a acusação de abuso sexual feita por Dylan Farrow, filha adotiva de Woody e da atriz Mia Farrow.

O tema é gravíssimo, e acho que qualquer acusação de abuso sexual precisa ser investigada com a máxima dedicação.

O fato é que a acusação contra Woody Allen foi investigada com a máxima dedicação. Não uma, mas duas vezes.

O caso começou em 1992: Woody e Mia, que eram namorados, se separaram depois que ele iniciou um romance com Soon-Yi Previn, então com 22 anos de idade, filha adotiva de Mia e do pianista e maestro americano André Previn.

Em agosto do mesmo ano, Woody foi visitar os dois filhos adotivos que tinha com Mia —a menina Dylan, de 7 anos, e o menino Moses, de 12— na casa de campo de Mia, em Connecticut. Mia não estava, mas a casa estava cheia de empregados e de crianças (Mia tinha vários filhos, biológicos e adotados).

Segundo Mia, depois da visita, Dylan teria dito que Woody abusara sexualmente dela. Mia gravou um depoimento da criança e entregou as fitas à polícia.

Iniciaram-se, então, as investigações: a primeira, realizada por uma unidade especial de investigação de abusos de crianças do Estado de Connecticut, durou seis meses, e concluiu: "Dylan não foi abusada sexualmente por Allen".

A segunda foi ainda mais extensa —14 meses— e envolveu profissionais dos Serviços Sociais do Estado de Nova Iorque. Novamente foram interrogados todos os presentes, incluindo Woody, que passou por um detector de mentiras. Conclusão: "Não foi encontrada nenhuma prova credível de que a criança (...) tenha sido abusada ou maltratada".

Os investigadores aventaram duas hipóteses para explicar as acusações de Dylan. A primeira: "As declarações não eram verdadeiras, mas foram inventadas por uma criança emocionalmente vulnerável", e a segunda: "Dylan foi treinada ou influenciada pela mãe".

Woody Allen nunca foi acusado pelo suposto abuso, porque não havia provas para justificar a acusação (quem quiser mais detalhes do processo deve ler este artigo da jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho).

Corta para 2018: Dylan, agora uma mulher de 32 anos, dá entrevista a uma emissora de TV norte-americana em que reitera as acusações contra Woody. Se em 1992 as acusações foram rechaçadas pelos investigadores e não chegaram sequer aos tribunais, em 2018 ecoaram fortemente nas redes sociais.

Mesmo sem provas, a "justiça" da Internet rapidamente condenou o cineasta: seus dois últimos filmes não encontraram distribuidores nos Estados Unidos, e sua autobiografia, "Apropos of Nothing", teve o lançamento cancelado pela editora Hachette depois de protestos da família Farrow e de funcionários da editora. O livro acabou lançado, semanas depois, por outra editora, a Arcade.

É uma pena que toda discussão sobre Woody Allen tenha que envolver o assunto do suposto abuso sexual, porque isso pode desestimular muita gente a ler a autobiografia e, assim, perder a chance de conhecer um livro fascinante, revelador e lindamente escrito. Além de muito, mas muito engraçado.

"Apropos of Nothing" é daqueles livros que você torce para não acabar. Allen conta com riqueza de detalhes sua infância, passada num bairro de classe média do Brooklyn. A mãe, Nettie, era o modelo da mãe judia superprotetora, e o pai, Martin, um trambiqueiro metido até com a Máfia: "Meu pai comprou uma pequena mercearia falida na Avenida Flatbush e, com planejamento e trabalho duro, em pouco tempo conseguiu dobrar os prejuízos".

Fãs da comédia inteligente e sardônica de Allen, acostumados a vê-lo como um típico intelectual nova-iorquino, vão se surpreender com as revelações de que ele preferia mil vezes um jogo de beisebol a uma peça de teatro. Gostava de matar aula em Manhattan para comer cachorro-quente e ver musicais da Metro no cinema, e sonhava em seguir a carreira de mágico:

Para mim, a leitura sempre competia com esportes, filmes, jazz, truques de cartas, e o próprio ato de não ler, porque as letras eram pequenas demais (...) Você ficaria chocado ao saber o que eu não sei e não li ou não assisti

Fã de Bob Hope e Groucho Marx, Woody entrou no humor por acaso, quando percebeu que poderia ganhar uma boa grana escrevendo piadas para outros comediantes. Dali foi um pulo para a comédia "stand up" e, depois, para o cinema.

"Apropos of Nothing" é uma sucessão de capítulos engraçadíssimos e reveladores, infelizmente interrompidos de vez em quando por assuntos trágicos como as brigas com Mia Farrow e as acusações de abuso sexual.

O livro deve ser lançado no Brasil no segundo semestre pela Editora Globo. Não deixe de ler.

Mubi exibe clássico do suspense

Em 1960, Alfred Hitchcock lançou "Psicose", filme sobre um assassino atormentado por torturas psicológicas infligidas na infância.

No mesmo ano, do outro lado do Atlântico, o britânico Michael Powell fez um filme tão ou mais radical: "Peeping Tom" ("A Tortura do Medo").

Mark Lewis (Karlheinz Bohm), um fotógrafo e assistente de câmera de um estúdio de cinema, filma os assassinatos que comete para capturar a expressão de pavor no rosto de suas vítimas.

"Peeping Tom" é um dos primeiros filmes a explorar o tema do voyeurismo. Powell, famoso por suas colaborações com Emeric Pressburger em clássicos como "A Vida e a Morte do Coronel Blimp" (1943), "Narciso Negro" (1947) e "Os Sapatinhos Vermelhos" (1948), usa cores saturadas - em especial o vermelho - para realçar a psique de Mark Lewis.

É impossível assistir a este filme e não ter a convicção de que Brian De Palma o usou de "inspiração" para fazer "Vestida para Matar" e "Dublê de Corpo".

"Peeping Tom" está disponível por 14 dias no serviço de streaming MUBI. Não perca.

Adeus a Aldir Blanc

Esta coluna já estava escrita quando veio a notícia da morte do grande Aldir Blanc. Ruy Castro fez um texto muito bonito na "Folha" sobre o compositor.

Deixo aqui uma pequena homenagem, com uma de minhas músicas prediletas de Blanc: "Miss Suéter", escrita para o disco "Galos de Briga", com João Bosco.

Uma ótima semana a todos.

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