Quando você vai, enfim, inventar, em vez de escrever sobre si? A pergunta não foi feita a mim, mas a uma amiga anos atrás e a entravou. Como se ela fosse uma escritora menor se não inventasse. Como se a ficção total fosse superior à escrita de si. Como se existisse algo como ficção total, ou como...
"Se você levar nove minutos para ler este texto, durante este tempo uma mulher terá morrido por ter feito um aborto clandestino. Provavelmente, essa mulher será do hemisfério sul, de um dos países onde abortar ainda é ilegal — não por coincidência, em sua maioria, países considerados...
É deselegante escrever sobre a própria obra. É, sem dúvida alguma, deselegante, mas me perdoo de antemão munida de justificativa: uma adaptação é uma obra em si, outra da qual a originou.
Mulheres abortam. De todas as religiões, classes sociais, etnias e profissões, mulheres realizam e continuarão realizando procedimentos abortivos clandestinamente e de maneira insegura no Brasil.
"Bebê Rena" é um título instigante para uma série, quase incômodo, de uma estranheza que nos interpela, como provavelmente toda estranheza. O nome vem a calhar, pois a série trata justamente do estranho, assim como dos limites pouco definidos entre o singular e o patológico, o impulso e a...
Julia Dantas é escritora e sua casa foi uma das centenas de milhares de casas alagadas no Rio Grande do Sul. Empresto suas palavras para dizer o que aconteceu, o que está acontecendo. "Se algum dia eu virar cineasta e fizer um filme de terror, essa cena estará lá: a água brota por entre as junções...
Quando soube da notícia da morte de Paul Auster, temi que me pedissem para escrever algo sobre ele. Como quase todo temor, no centro dele havia um desejo: o de que me pedissem para escrever algo sobre ele.
Você abandona livros? Eu não. Ou pelo menos eu achava que não, até que precisei fazer uma limpeza na cabeceira da minha cama, onde uma montanha de páginas se acumulava, e constatei que alguns já haviam sido abandonados. Não como uma decisão tomada do tipo "não estou gostando, vou parar de ler", mas...
Nos oito anos em que trabalhei num hospital penitenciário de São Paulo, tive diante dos olhos o que já sabemos: racismo prende e prisão mata. (O silogismo lamentavelmente funcionaria excluindo prisão da sentença: racismo mata).
Imagine se você perdesse de repente o que você mais gosta. Bem, não de repente, mas no intervalo de dois meses. Um dia você é uma garota de treze anos que vai à escola, em outro você está cega. Sua escola e seus amigos têm muita dificuldade de se adaptar e te oferecer o melhor para a sua nova...
Eu a vejo e meu corpo é percorrido pelo contrário de um calafrio, porque é quente. Um reconhecimento imediato, a familiaridade que junta o presente com o passado, mesmo um passado que nunca existiu, pois é a primeira vez que tenho Helena Taliberti diante de mim. Sua beleza salta, chega antes dela,...
Se você está lendo este texto, a luz provavelmente está funcionando na sua casa. Você nem sequer está pensando na corrente elétrica que entra pelos fios e faz funcionar internet, ventilador, portão, chuveiro e geladeira e da qual só percebe depender tanto quando falta.
No início era a febre. Uma febre alta, batendo os 39 graus, que não baixava, não baixava, que custava e custava a baixar. Um dia. Outro dia. Exame de dengue: positivo. E então, dias de medo e horror.
"Ninguém Quis Ver": a denúncia é o título da coletânea de poemas de Bruna Mitrano lançada recentemente pela Companhia das Letras. Ninguém quis ver, mas ela mostra. Seus versos se embrenham para o lugar de onde os olhos do mundo desviam: para a periferia, para a neurodivergência, para o abuso, a...
Pela primeira vez uso maiúsculas, desde que comecei a escrever colunas: HÁ UM GENOCÍDIO EM CURSO EM GAZA. Mais de 29 mil pessoas foram mortas, muitas delas crianças, e outras milhares foram gravemente feridas. Eu não relativizo esse genocídio. Um cessar-fogo é urgente, prioritário, vou ser...
Ela está ali, na sua frente, fantasiada, provavelmente bêbada: a pessoa que sabe de boa parte dos seus segredos. Do vasto catálogo das possibilidades, três reações se apresentam a você: ostentar o seu melhor sorriso malandro e assim instaurar alguma cumplicidade carnavalesca; fingir normalidade;...
Um mundo só de mulheres já existe na ficção. Em "A Segunda Mãe", de Karin Hueck, lançado recentemente pela editora Todavia, os homens não participam do cotidiano. Mas trata-se de uma distopia, da invenção de um mundo estranho e bizarro, ainda que diga tanto sobre o nosso.
Eu, que sempre escrevo em silêncio, ou que prefiro escrever em silêncio mas escrevo como dá, opto por teclar estas palavras ouvindo repetidamente a versão instrumental de "P.I.M.P." nos fones de ouvido, enquanto meus filhos veem TV atrás de mim. Quem já viu o perturbador e magnético "Anatomia de...
"Parece que nós, seres humanos, estamos cada vez piores em lidar com a efemeridade da beleza física. Talvez seja porque vivemos numa economia capitalista, em que pensamos que tudo é — ou precisa ser — uma curva eternamente ascendente." Impossível não concordar com a socióloga e quadrinista sueca...