Durante anos mantive na parede do meu quarto de criança um quadro que trazia a imagem de um chimpanzé, e embaixo as palavras: "Justo quando aprendi todas as respostas sobre a vida, trocaram as perguntas". Não sei quem terá escolhido aquele quadro para o meu quarto, se eu mesmo, minha mãe, meu pai....
Sim, é preciso falar de novas velhas mortes. Confesso que às vezes desvio o olhar, protejo meu imaginário, não quero ver um homem atropelando uma mulher, um homem espancando uma mulher no elevador, um homem atirando uma mulher de um indefinido andar. A morbidez de tudo me afasta, assim como a...
Um amigo devotou um ano de sua vida à leitura de "Guerra e Paz", de Tolstói, e à exploração de sua vasta fortuna crítica. Não fez uma única anotação enquanto lia, não tomou o lápis na mão para um grifo, atravessou as mil páginas deixando-as ainda brancas, imaculadas pela travessia. Aquilo me...
A cena foi simples e ainda assim distópica, inesquecível. Estava parado no sinal vermelho, por acaso sem buscar distração, olhar perdido no vazio, ou mais precisamente nos carros opostos a mim. O sinal verde se abriu e ninguém se moveu. O primeiro motorista, dominado por seu celular, não percebeu...
Entre os clássicos conselhos para uma boa escrita, para a composição de uma história cativante e única, consta uma palavra de ordem bastante peculiar, incompreensível na primeira vez que a ouvimos: mostre, não conte. Vem do inglês, como de costume, de uma cultura em que o "show, don't tell" se...
Esta noite haverá uma festa. Amanhã, neste amanhã em que o severo leitor me espreita ainda com seu cenho franzido, neste amanhã faço aniversário. Acabo de passar algumas horas à procura de uma beleza qualquer que desfranza o cenho desse sujeito, uma beleza que seja em si o convite à festa, à...
Penso no menino franzino que se escondeu debaixo do sofá, enquanto rajadas intermináveis de tiros assolavam sua comunidade. A mãe ao lado, ajoelhada junto à porta, oscilando entre rezar e chorar, repetindo o nome do outro filho que ainda não voltara para casa. À noite, sozinho, esperando a mãe que...
Penélope se aproximou com olhos estreitos, inquisitivos. Queria saber se era verdade, se era mesmo verdade a história quase impossível que a mãe lhe contara outro dia. Se uma parte ínfima dela própria, Penélope, uma parte chamada óvulo, existia dentro da mãe desde que a mãe tinha a idade dela, e...
Quanto tempo levaria o leitor para abandonar este texto se o sentido lhe parecesse esquivo, indeterminado? Se a segunda frase já turvasse a proposta da primeira, lançando uma palavra fora de hora, obscuridade, uma palavra improvável, obnubilação, alguma metáfora insensata como um espelho na...
Há sobre as nossas cabeças uma estrela prestes a explodir, um mundo inteiro a ponto de colapsar, de passar de tudo a nada, de imensidão misteriosa a caos desfeito. Há muitas estrelas prestes a explodir, decerto, mas dessa sabemos com precisão maior porque é das mais brilhantes do nosso céu, a...
Por que alguém se encerra numa sala com um desconhecido, deita-se e extravia o olhar no vazio, põe-se a contar seus conflitos íntimos, suas memórias de infância, seus sonhos estranhos, as minúcias de sua vida? O que ganha com essa exploração verbal de si que poderia se estender até o fim de seus...
A morte produz uma cadeia infinita de desamparos. Vai se perdendo o domínio sobre a própria voz, os próprios olhos, os próprios órgãos, a própria imagem, sobre a ideia que alguém faz de nós. Nisso ao menos há uma vantagem: a morte não termina nunca. O amigo de um amigo entrou num bar. Eu não estava...
O mundo não nos dispõe sentidos, oferece nada mais que presenças, movimentos. Quem escreve se depara continuamente com essa evidência: as coisas do mundo apenas existem, anteriores às palavras e aos significados que lhes damos. E, no entanto, tais coisas às vezes se tornam imagens perfeitas do que...
São dias históricos, há algo de grandioso em curso, mas não me vejo tão alegre assim, não me percebo mais propenso ao riso. É claro que uma piada bem formulada, uma charge sagaz, um meme preciso, tudo alcança sua graça, mas a entrega ainda não é total, não me desarmo como o bom riso exige. Talvez...
"Embora vigies, a morte conspira nas entrelinhas", é o que diz a epígrafe de Alcides Buss no primeiro romance de Luis Fernando Verissimo. Semana passada a morte concluiu com sucesso sua conspiração de décadas, levando consigo o nosso autor mais querido. Não o levou de surpresa, porém, e não nos...
Hoje quero falar sobre um sujeito esquivo, circunspeto, incompreendido. Um sujeito que, apesar de toda a distância, toda a diferença, parece me encarnar de alguma maneira, parece dizer coisas inesperadas sobre a minha vida. Alguém que acabo de descobrir e que, no entanto, me habita despercebido há...
Convidaram-me a falar sobre a mentira dos finais felizes. Tarefa fácil: são mesmo mentirosos os finais felizes. Basta lançar ao mundo algum olhar clínico. Nossa cultura já aprendeu que nem tudo se dissolve em harmonia, que jamais se cria uma paz absoluta, carente de todo trauma passado e todo...
Misteriosa coisa é o humor. Podemos rir profusamente de uma pequena estupidez, de um ato ridículo qualquer, e no entanto abrir um módico sorriso diante da ironia mais inteligente. Não há juízo nisso, não é uma declaração de preferência. A segunda, a frase sagaz que tudo ilumina, pode perdurar em...
Você não viu nada em Hiroshima, nada. É o que diz o homem de Hiroshima à sua amante francesa, enquanto ela o abraça, acaricia sua pele que queima, agora áspera feito areia. Eu vi tudo, tudo, ela discorda. Eu vi o hospital, tenho certeza. Como poderia evitar de vê-lo? Mas ele retruca, seco, você não...
Vi que estreitava os olhos, entreabria a boca, franzia a testa, todo seu rosto se movia numa inconfundível expressão de surpresa. Penélope ensinou-se a ler há pouco tempo, e tendo desvendado sozinha o segredo das letras dedica agora boa parte da vida a desvendar os segredos do mundo. Mas aquilo não...