Dizem que andamos cada vez mais afastados, que trocamos esta infinidade de palavras porque cada vez mais nos estranhamos. Não são poucos os que sentem findo o tempo das amizades reais. Sentem que estamos fadados à condição de espectros que falam demais, avatares que trocam afagos abstratos sem...
Manuais de jornalismo indicariam que eu a esperasse fazer oitenta anos, noventa, cem. Ou mesmo que deixasse para homenageá-la só na ocasião de sua morte, quando sua voz fosse um silêncio sentido, eco discretíssimo das maravilhas que dela ouvimos. Eis a nossa insensata praxe: guardar a exaltação...
O que me agrada na estranha convenção de afirmar em uníssono um tempo novo, e de nos abraçarmos no mesmo minuto, e de celebrarmos um efêmero instante com fogos e gritos, o que me agrada, além da festa, é a atenção ao futuro. Nesse átimo é como se o passado se calasse, reduzido a uma listagem de...
Aos poucos vou aprendendo as práticas costumeiras da crônica, as diretrizes secretas desse ofício delicado. Creio ter aprendido, por exemplo, que um cronista desejoso de sair de férias deve anunciá-lo num texto, deve buscar crônicas prévias que referendem seu anseio, e deve oferecer ao leitor uma...
Elas estão por toda parte, atiradas ao chão em plena calçada, aos berros inaudíveis dentro dos carros, agarradas aos balanços nas praças, girando por horas nas escadas rolantes. São as crianças difíceis, as que intransitivamente resistem, recusam, renegam, disputam, insistem. Tente neste exato...
Para escrever o dia mais longo da história da literatura, James Joyce levou sete anos. Cansado depois do esforço do "Ulisses", pôs a linguagem para dormir e passou dezesseis anos imerso em sonho e delírio, escrevendo a noite de "Finnegans Wake". Tolstói foi mais eficaz, se propôs a narrar quinze...
Não quero fazer injúria ao silêncio, que estimo como um amigo. Têm meu profundo respeito os taciturnos e os melancólicos, os amenos e os solitários, os chatos e os tediosos, os diligentes e os cansados, todos os que zelam pela mansidão da noite. Mas quero fazer hoje o elogio do ruído, da agitação...
Um homem intratável e triste vive só, com seus quatro cães. Desde a infância afastou-se dos pais, nunca cultivou amizades. Há alguns anos perdeu seu único amigo, Conan, um mastim inglês que o acompanhava a cada noite numa taça de champanhe. Não quis ficar de todo só quando Conan morreu, por isso o...
Procuro palavras para uma lápide. Há quase um ano morreu meu pai e se aproxima a hora de firmar uma pedra sobre seu jazigo, sobre a terra que cobriu seu corpo, já tomada pela grama alta e viva. Por uns dias paraliso, ou me distraio em outros movimentos, me esquivo da tarefa tão difícil. Sinto como...
Imprudente ofício é este, de viver em voz alta. Se já sentia isso o unânime Rubem Braga, só pode ser muito maior a imprudência do cronista menor que sou, cronista aprendiz e desastrado. O caso é que escrevi, tempos atrás, uma pequena crônica apocalíptica sobre o possível fim da crônica, um fim...
Deixara o corpo à deriva no mar, deixara-se levar por águas e desejos até que seus pés já não tocassem o chão. Agora não tinha mais nenhum controle sobre a situação, nenhum controle sobre seu corpo. Agora se via lançada de um lado a outro pelas ondas, que a empurravam, a arrastavam, a faziam dar...
É preciso ir além da morte, ir além da indizível dor. É preciso não admitir um povo só de vítimas, de corpos silenciados sob os escombros, de civis contabilizados nas estatísticas. É preciso que não se faça imaginável a dizimação que uns desejam e outros execram. É preciso conceber esse povo em sua...
O mínimo que se pode dizer sobre a guerra, sobre qualquer guerra, é que é um enorme desatino, um ato coletivo de insanidade. A guerra choca porque é devastadora e cruel, porque dizima vidas como se nada fossem, como se não importassem, como se houvesse causas que a justificassem. Devia chocar...
Para chegar até ali, para chegar aos dias que se fariam expressão do nosso futuro trágico, era preciso atravessar os intermináveis campos de soja. Aonde quer que eu olhasse nenhuma árvore, nenhuma alma, ou talvez apenas o espectro dos trabalhadores que lavraram aquelas terras num passado já remoto.
Ninguém me dirá como escrever bem, nenhum tirano ditará quais palavras me cabem dizer, se meus verbos se insinuam antiquados, se meus adjetivos são invasivos e solenes, se meus advérbios alongam frases desnecessariamente, se minhas metáforas estão mortas como um rato esmagado por um trem, se minha...
Há tantos anos você rumou para o norte, que o sul não acusa a sua ausência. Numa carta entre amigos é preciso ser absolutamente sincero: o ar não se fere sem o seu nariz, nenhuma esquina aguarda a mansa aparição da sua silhueta, a cidade sobrevive em seu rumor indiferente, desaba e ressurge...
Há cinquenta anos, neste exato dia, mataram um grande poeta. Eis o que tão lentamente desvendamos: que Pablo Neruda não morreu pelo câncer que consumia seu corpo, e sim foi morto pelo câncer que corrói as entranhas do nosso continente, pelo brutal autoritarismo que atravessa a nossa história.
Era impecável o quarto, com suas paredes imaculadas, seu equilíbrio delicado de cores, seus graciosos objetos ocupando sempre o devido lugar. Só os livros infantis não encontravam bem onde repousar, e por isso decidimos comprar estantes leves, singelas e brancas que os acomodassem. Imbuído ao...
Eis um dos problemas do tempo, que seja invisível aos olhos. Quem olha pela janela de sua casa não vê mais que o instante, nada sabe dos meses, dos anos, das décadas. Se mora numa cidade movediça e interminável, digamos São Paulo, não vê muito mais que o marasmo, e pode sentir a contraditória paz...
Ficou esquecida em algum ponto conspícuo da calçada, sobre os ladrilhos típicos do Rio, em alguma esquina incerta entre a praia, o bar e a sorveteria, numa rua cujo nome agora me escapa. É uma boneca comum, difícil de caracterizar: tem os olhos de um azul irreal, a boca aberta num eterno...