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Para Sheila Leirner, as bienais marcam memória sensível coletiva

Da Redação

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A curadora da 18ª e 19ª Bienais, Sheila Leirner

A curadora da 18ª e 19ª Bienais, Sheila Leirner

Sheila Leirner foi curadora de duas bienais que marcaram época. A 18ª, que passou para a história como a Bienal da grande tela, e a 19ª, na qual se destacaram as salas de Anselm Kiefer e de Marcel Duchamp. A convite do UOL, Sheila Leirner respondeu a algumas perguntas sobre a história das Bienais. Morando em Paris, a crítica e estudiosa de arte enviou seu depoimento em arquivo sonoro. A seguir, leia a transcrição deste depoimento ou, para ouvi-lo, clique no player abaixo.




UOL - Quais foram as primeiras bienais que você visitou?
Sheila Leirner -
Eu tinha três anos quando meus pais me levaram pela primeira vez ao Museu de Arte Moderna, onde foi a 1ª Bienal de São Paulo. Eu tinha cinco anos quando eles me apresentaram a tela de Picasso, a "Guernica", já no pavilhão do Niemeyer. Eu tinha sete anos quando os prêmios a (Fernand) Léger e a (Alfred) Kubin foram contestados pelos críticos Mário Pedrosa e Lourival Gomes Machado e eu já ficava muito aflita diante do "bem" da Arte Moderna e do "mal" ao qual eles davam o terrível nome de "obsoleto", então por muito tempo eu não entendi muito bem o motivo pelo qual o abstrato brigava tanto com o figurativo nas discussões sociais e familiares.

A minha mais remota lembrança da Bienal de São Paulo foi a procissão de milhares de pessoas que se dirigiram ao Ibirapuera como se estivessem se dirigindo a um templo. Isso me marcou profundamente. A pressa, as cotoveladas para se conseguir um lugar em frente à famosa tela de Picasso, e os comentários que se seguiram, também, isso me marcou muito.

As palavras guerra, comunismo, revolucionário, cubista, expressão, proporção, divisão, desproporção, assimetria, liberdade, grito, silêncio. Essas palavras todas elas ficavam soltas na minha imaginação, eu era criança, mas eu lembro.

Nos anos 1950, 1960 e mesmo no começo dos anos 1970, as singularidades e as personalidades individuais falavam mais alto e o mundo das artes fabricava estrelas tanto quanto Hollywood.

Hoje, as crianças vêm "Star Wars", eu vivia "Art Wars", onde o que estava fora da arte não raro se misturava com aquilo que estava dentro, então tinha construtivismo, lirismo, expressionismo, semi-abstracionismo, semi-figurativismo, unidade tripartida de Max Bill, os limões do (Danilo) Di Prete, e todas essas palavras, essas frases, elas se confundiam na minha cabeça com Quarto Centenário (de São Paulo), que era aquela época, "hors concours", os prêmios, júris de seleção, júris de premiação, os comissários estrangeiros, os críticos, os artistas, política, justiça e injustiça.

UOL - Qual foi a Bienal que mais marcou a sua vida antes de ser curadora e por quê?
Sheila Leirner -
Por todas as razões que eu disse até agora, eu creio que foram as primeiras, mas também as dos anos 1960 e 1970, com o expressionismo abstrato e a pop art, com trabalhos de grandes dimensões e as primeiras instalações como as do George Segal.

UOL - Qual o artista ou a obra mais impactante que você conheceu através da Bienal de São Paulo?
Sheila Leirner -
Acho muito difícil falar, porque foram tantos, durante todos esses anos, mas o que eu posso dizer é que quase tanto quanto essas primeiras bienais que marcaram minha vida, há muitos personagens cujos rostos e personalidades eu jámais esqueci.

Assim, é muito difícil pensar em Bienal sem pensar em pessoas como, por exemplo, o Ciccilo Matarazzo, o Francisco Matarazzo Sobrinho, o Quirino da Silva, o Luiz Martins, o Sergio Milliet, o Mário Pedrosa, Lourival Gomes Machado, o professor Bardi, e tantos outros que ajudaram a fazer a Bienal, inclusive críticos e comissários estrangeiros que vinham como Pierre Restani, (Werner) Schmalenbach, (Richard) Stanislasvski e mesmo o prefeito de Roma, Giulio Carlo Argan.

UOL - Ser curador na época em que você foi é o mesmo que ser curador hoje?
Sheila Leirner -
As primeiras bienais eram bienais de personalidades. Não carecia e não passava pela cabeça de ninguém, que uma exposição orientada por uma idéia, assim como a própria obra de arte, ou mesmo o ser humano, pudesse ter ela mesma uma personalidade. Que tivesse a faculdade de ser como um livro, um filme, ou um espetáculo.

Naquela época, nem se adivinhava que se pudesse contribuir para transformar uma exposição numa experiência cheia de suspense, de emoção e de prazer. Teoricamente, um sonho como esse, quando a gente realiza, torna-se uma metáfora.

Porém, a Bienal ainda estava distante deste estágio. Naquele tempo, não existia a palavra "curador", falava-se em comissários, diretores artísticos, assessores de artes plásticas, secretários, assistentes técnicos, conselheiros de arte e cultura, como se esses fossem, e eles eram, colaboradores, e não agentes dos artistas. Só final dos anos 1970 é que se começou a usar essa designação: "curador".

Na época em que nós fizemos as nossas bienais, a curadoria era o sonho de se realizar no espaço as idéias críticas que antes nós colocávamos só no papel. Era uma espécie de crítica tridimensional, trabalho de arte sobre arte, como uma ópera, uma peça, um concerto.

Hoje o vocábulo está, na minha opinião, completamente inflado e pessoalmente eu detesto a palavra, pois todo mundo se batiza curador e essa palavra não significa mais nada.

Eu penso que para os que restaram como verdadeiros merecedores da velha acepção do termo, eu daria agora o nome de "metteur en art", ou "arteasta", por que não. Afinal, um verdadeiro curador é e pode ser também um artista.

UOL - Como foi a experiência de curadoria da Bienal?
Sheila Leirner -
Pessoalmente, eu prefiro dizer que as bienais de 1985 e 1987 não se resumiam apenas na "Grande Tela" ou na "Grande Coleção". Essas bienais queriam formar, em sua totalidade, dois grandes espaços coletivos utópicos e metafóricos.

Menos temáticas e mais intuitivas, elas pretendiam revelar o espírito e a energia da época, reafirmando o caráter crítico transitório não-museológico e espetacular do evento.

Então, foi essa a experiência da curadoria na Bienal, porque na verdade se sabe que essas bienais não se deveram apenas ao trabalho do curador. Elas foram idealizadas e realizadas graças aos artistas, ao suporte irrestrito e aos subsídios técnicos e intelectuais de uma comissão, de presidentes, da diretoria, enfim, toda uma competente família de curadores, assistentes, montadores, arquitetos, administradores e tudo mais. Então, a experiência de curadoria da Bienal é antes de tudo uma experiência coletiva.

Acho que também é importante saber que na nossa época, essa foi uma experiência coletiva idealista. Ela tinha um objetivo quase que utópico --porque é do conhecimento de todos que a 18ª e a 19ª bienais de São Paulo custaram entre U$ 2 e U$ 3 milhões cada uma, o que foi cinco a seis vezes menos do que passaram a custar as bienais nos anos seguintes. Isso quer dizer que elas foram realizadas com uma certa dificuldade.

Outro aspecto da curadoria foi o fato de que em vez de encerrar os artistas em espaços individualistas ou em guetos nacionalistas, como o que foi retomado em seguida, essas manifestações se esforçaram por dar continuidade a um trabalho, e aqui eu faço questão de citar um trabalho que foi iniciado em 1981 por Luis Villares e Walter Zanini, que foi de influenciar os envios oficiais e de extingüir o anacronismo das premiações. E de extingüir também os cubículos brancos e as fronteiras geopolíticas da arte. E tudo isso por meio de uma articulação dos trabalhos, por meio de uma analogia de linguagens com vistas ao caráter universalista da arte.

UOL - Na 18ª Bienal um dos destaques foi a Grande Tela.
Sheila Leirner - Dos bastidores e do nascimento daquela experiência há muito o que comentar, mas o mais importante porém é que ela possa servir ainda como uma reflexão contemporânea sobre a arte e as formas de expô-la por meio de uma crítica tetradimensional, ou seja, por meio de uma metáfora que seja fiel aos valores nos quais a própria arte se origina.

O fato é que a "Grande Tela" nasceu da náusea e da fascinação. Aquele era um período no qual mais enjoativo do que o cheiro e a textura da tinta em excesso, era a saturação de imagens.

Em 1985, como se sabe, a pintura renascia de todas as maneiras, os seus filhotes cresciam como cogumelos, chegavam às centenas e se acumulavam de uma forma assustadora no pavilhão da Bienal. Muitos deles com a tinta ainda fresca. Tal fenômeno de multiplicação de imagens impedia a visão individual e propunha uma abordagem radicalmente coletiva.

Isso era tanto mais possível quanto maior fosse a noção de que o verdadeiro crítico pode e deve ser também um artista e de que uma Bienal não é um museu. De que a Bienal é uma plataforma da mais absoluta liberdade crítica e do mais íntegro e categórico compromisso com o público.

Eu conduzia o meu carro, como todos os dias, pela avenida 23 de Maio que leva ao parque Ibirapuera, mas estava dominada pelas sensações que me causavam aquela invasão pictórica, plena de luz e de sombras. Como um desfilar de almas, emanavam delas umas energias mescladas, estranhas.

Todas as problemáticas do mundo pareciam se espelhar naquela produção feérica. Não se podia compreendê-la ou exprimi-la espacialmente senão pela figura de um grande e único conjunto.

Eu olhei para a avenida que eu percorria com o carro e imaginei o grande tecido esticado em chassi, cujas imagens vistas em alta velocidade animavam-se em toda a sua extensão. Essa instalação imaginária praticamente se nomeou por si própria: "Grande Tela".

Em seguida, veio a visão do anel de Moebius que o Lacan chamava de "oito interior" e que nos mostra uma superfície para a qual as noções de lado direito e avesso não existem, quer dizer, um anel infinito. Então eu tive a idéia de que a "Grande Tela" seria um anel infinito.

No início, as reações foram de entusiasmo e empatia. Eu acho que todos nós passávamos pelo mesmo processo sensorial que estava relacionado com aquele fenômeno do renascimento da pintura e que nos permitia ir além do mero conhecimento e dos procedimentos tradicionais. Enfim, foi o início de uma luta que a gente não imaginava afrontar.

Realmente foi muito difícil porque durante a montagem o presidente da Bienal foi obrigado a pedir o fechamento circunstancial da área para que pudéssemos trabalhar e a colocar policiais e seguranças para impedir a desordem e os excessos.

Eu não me lembro de ter sofrido na minha vida tantas pressões, agressões e tamanho estresse. Eu vi com muito espanto o quanto essa polêmica totalmente involuntária serviu também para atiçar o interesse do público e da mídia. Agora, sinceramente, eu não sei de que forma ou se realmente o tumulto contribuiu para alguma reflexão. Eu só sei que esse espaço perturbador, essa zona de turbulência, que como eu escrevi na época era análoga àquela que encontrávamos na arte contemporânea, ela marcou um retorno utópico ao homem e à vida, noções essas que tinham se perdido nas décadas anteriores e que nós decidimos emblemar por meio de esculturas antropomórficas que remataram as passagens dos corredores.

Enfim, hoje século 21, o homem e a vida continuam sobre outras formas e em outros cenários, mas o que ficou da grande tela foi a imagem de uma réplica do universo das intervenções, ou melhor, um desdobramento completamente prospectivo e quase divinatório da grande teia em que ele acabou por se transformar com a mundialização e o verdadeiro emaranhado da Web.

Se os artistas e sua arte são os únicos a possuir a capacidade de prospecção, uma exposição que tem esses artistas e a arte como medida só poderia nos fazer ver adiante. E ao longe, no futuro, hoje graças à emoção que nos permitiu observar essa aptidão, a "Grande Tela" finalmente se materializa.

UOL - Como foi a sua experiência com a repercussão da "Grande Tela" entre artistas, críticos e público?
Sheila Leirner -
Eu ainda não li os livros e as teses, mas até hoje eu acredito que o que foi dito e pensado sobre esse espaço não chega totalmente ao que ele pretendeu e mostrou de fato.

Um artista, por exemplo, afirmou que ele tem uma barreira em relação aos curadores, que, segundo ele, são uma necessidade desnecessária. A principal objeção desse artista é que o curador tem a idéia e certos trabalhos se adaptam a ela ou vice e versa e a partir daí ele organiza. Segundo ele, o curador é o intelectual, mas não o criador, que ele não tem o poder de criar, mas sim de organizar. Aí, esse artista citou a "Grande Tela" como a obra de alguém que se considerava criador e o artista, diz ele, passou a ser o empregado, o operário.

Bem, eu nunca ouvi um autor de teatro ou de cinema ou um ator que tivesse afirmado tal coisa com relação a um diretor ou a um argumentista. Também eu nunca ouvi falarem isso os compositores sobre os intérpretes musicais ou os maestros.

Talvez Shakespeare ou Wagner não tivessem ficado satisfeitos com o que foi feito de suas obras por diretores contemporâneos, mas eu acho que se trataria apenas de uma discordância.

Aqueles gênios certamente não se prestariam à repressão ou à imposição ditatorial de regras para conter esses diretores em gavetas burocráticas. Afinal, o que são os intérpretes, maestros e diretores de cinema e teatro se não os mediadores entre obras e público? O que são eles se não artistas que trazem luzes particulares das quais podemos discordar ou não, é claro, sobre as obras de outros artistas?

Pessoalmente, eu acredito que o curador devia estar para arte assim como esses mediadores estão para a criação teatral, literária, cinematográfica ou musical. Ou seja, como partícipe de um trabalho conjunto, de colaboração, onde não existe empregado ou operário.

Como colocar um curador na gaveta de organizador quando ele lida de dentro com a matéria de criação? Como é possível apenas limitá-lo apenas à condição de intelectual quando seu objeto de análise, enquanto objeto de exposição, pode pedir a mesma fantasia, a mesma imaginação, o mesmo espírito? Como exigir que, em sentido inverso, o curador sirva o artista e dessirva o público, por meio de uma redundância crítica da obra?

UOL - A 19ª Bienal também ficou conhecida como a Bienal de Anselm Kiefer e da sala de Duchamp. Como foi o trabalho de montar essa Bienal?
Sheila Leirner -
Embora menos estressante, a montagem da 19ª Bienal de São Paulo não foi menos difícil. O que me entristece é quando eu ouço falar que ela ficou conhecida como a Bienal de Anselm Kiefer ou da sala de Duchamp.

Porque, na verdade, eu teria preferido ouvir que ela foi a Bienal da "Grande Coleção", assim como a Bienal da "Grande Tela" foi a da "Grande Tela". Isso, é claro, apesar da grande importância de Marcel Duchamp e de Anselm Kiefer.

A "Grande Coleção" foi uma experiência de resgatar o sentido das maravilhas do "gabinete das curiosidades" e da disposição das galerias de arte dos séculos 17 e 18, nos quais a superposição de obras artísticas, das mais diversas linguagens, e elementos insólitos mantinham uma relação profunda com a riqueza e a magia do acúmulo e da descoberta.

Na verdade, nós fizemos um espaço que foi o oposto da "Grande Tela", que foi todo no sentido vertical, enquanto que a "Grande Tela" foi no sentido horizontal. Os três andares da Bienal, desde o térreo até o último, eles representaram nessa grande coleção, as antigas galerias, os wunderkammer, onde os elementos da natureza e da arte, objetos de paixão e de posse, não evidenciavam uma separação entre eles senão pela distância com que se aproximavam da Terra ou do Céu.

Então, animais, minerais, elementos orgânicos, insólitos ficavam próximo do olhar, perto do chão. E foi assim que nós colocamos os trabalhos no térreo.

A arte no alto, de onde emana a criação divina, então as obras mais espirituais ficavam nos andares superiores.

O "nosso museu" porque na verdade o que nós quisemos fazer foi um museu dentro da Bienal, novamente um espaço metafórico, ele era dinâmico, grandioso, teatral, hierárquico. Ele se erguia da Terra ao Céu num mágico cilindro espiralado, um cilindro de arte. Então, a forma encontrada pelos arquitetos para a concretização dessa idéia foi essa. Ela nos remete ao museu tradicional dos peitoris e dos nichos, onde o grande vazio cria a abside e predomina, imprimindo-lhe assim uma grandiosidade.

Ali, na grande coleção, dava para adivinhar até mesmo volutas barrocas no inconsciente plástico e na tradição do Oscar Niemeyer. Fundiam-se ali nos balcões, nos painéis e por trás deles, a arquitetura, o design, a pintura, a escultura, o objeto, a instalação. E esteve de volta a noção menos modernista do que barroca, da arte total. Era a ilusão, a cenografia de luz, cor e movimento, tudo isso para a criação de um grande espetáculo emocional.

As questões que orientaram meu depoimento foram muito boas e me permitiram dizer algumas coisas que eu considero importantes nessa experiência com as bienais de São Paulo.

Para terminar, eu gostaria de poder avaliar as bienais como um todo, mas vai ser um pouco difícil, pois em mais de meio século de existência, elas foram desiguais. Dividindo-se entre feiras, plataformas neutras de amostragem e verdadeiros fóruns, que além de exibir obras de arte, propuseram uma real discussão, contribuindo naturalmente para o próprio processo da arte.

Assim, embora pareça que as bienais sejam apenas agitações circunstanciais e efêmeras, eu gostaria de finalizar dizendo que elas deixam resíduos indeléveis, tanto na história e experiência individual das pessoas, quanto na memória sensível coletiva e formam uma teia histórica dos fatos e conteúdos artísticos. Nesse sentido, eu penso que a importância e o alcance das bienais é bem maior do que nós podemos imaginar.