Roberto Evangelista



"Ritos de passagem"
Projeto para Universalis. Caixas de sapato, sapatos usados, pedras de lios, areia, vidro, 1000X1000 cm
1996



Por Paulo Herkenhoff

Travessias e Dissoluções

Essa é uma arte de exaustâo e vazios. A instalaçâo Ritos de Passagem de Roberto Evangelista reúne mil caixas de sapatos, dois mil sapatos gastos e cinco pedras de lioz retiradas de uma calçada da cidade de Manaus. As pedras, extraídas do tecido urbano, sâo uma crônica do colonialismo. Porque levavam mais do que traziam, os navios de arribaçâo colonial chegariam vazios se nâo trouxessem pedras em seus por§es. Flutuariam sem lastro. Traziam pedras cortadas de Portugal, usadas para pavimentar as ruas das cidades amazônicas que se modernizavam no boom da borracha. Essas pedras tornavam-se uma 'correçâo' da natureza amaz-nica, regiâo desprovida de pedras duras. Cinco daquelas pedras foram desencravadas de sua imobilidade, na qual condensam sua história de corpo que se molda e esculpe com passos em um século de fricçâo entre calçado e calçada no movimento da rua. O paradoxo perverso é que, feitos de borracha sintética, esses sapatos, que hoje consomem as pedras, também funcionam como ícones da queda da fastigiosa economia extrativista da borracha. O processo seria entâo uma alegoria da idéia pós-moderna de desapariçâo do eu.

A pedra de cantaria introduz a noçâo de ausência (a idéia de uma falta na natureza) e de distanciamento - a pavimentaçâo da cidade moderna calçada é modo de diferenciaçâo entre espaço natural e espaço urbano, espelho de diferenças entre cultura nativa e cultura ocidental demarcadas no processo de colonizaçâo. As pedras cortadas - natureza racionalizada - ocultam o fato de que a cultura também se molda na relaçâo com o meio natural. Essas pedras-lastro apontam para as leis da física como emblemas da necessidade de equilíbro na economia de trocas, onde caixas de sapato sâo peso morto ou peso nenhum. Deslocados, aqueles grupos de objetos (pedras, sapatos e caixas) produzem um estranhamento.

Era sapato e agora é lixo. Sapatos gastam pedras. As caixas exibem seu vazio como se estivessem localizadas num lugar entre esses dois pontos de dispersâo de energia por fricçâo. Sâo signos exaustos no consumo. Já nâo mais seriam meio apto para a produçâo. Encontraram no uso o limite de esgotamento de sua funçâo como valor de troca. Ao comentar Mater Dolorosa (1976, um cubo de acrílico transparente com restos carbonizados de árvores sobre um quadrilátero de areia branca), de Roberto Evangelista1, o escritor Mzrcio Souza fala de "ruínas das culturas originzrias, assaltadas e massacradas; ruínas das impossibilidades da civilizaçâo ocidental; ruínas da natureza mal compreendida, uma paisagem de destroços"2. Nesse 'péntano da aculturaçâo' ocorre o duplo testemunho da constituiçâo do sujeito-criador, o artista da tradiçâo humanista-moderno, e da iminência de sua dissoluçâo antes que (ou sem que) a modernidade ocidental tenha imposto plenamente sua hegemonia na regiâo. Aqueles objetos inócuos, extraídos de sua utilidade cotidiana, sâo repotencializados como signos. Vê-se Ritos de Passagem como uma paisagem de ruínas do consumo. A obra desoculta a última possibilidade de valor produtivo para esses signos no processo de circulaçâo simbólica: articular uma voz coesiva num território de esquecimento.

A calçada, como parte da rua, diz o artista, é o lugar coletivo de um rito de travessia dizrio e constante. A vida flui como um rio, potente metáfora do tempo. A instalaçâo poderia ser um anti-rio. Cada pedra seria a imobilidade registrando as vidas que por ela transitam. Esse é o punctum no fluxo do tempo. O princípio do tempo, instituído pelo sujeito, será vivencial, dissolvendo a noçâo de manufatura e autoria. Na instalaçâo Mater Dolorosa in Memoriam II (da Criaçâo e Sobrevivência das Formas), de 1982, centenas de cuias flutuam num igarapé. Sâo organizadas dentro de certas formas. A obra é decurso e consumaçâo do tempo. Trabalhando sob a orientaçâo de um pajé, Evangelista investiga o pensamento cosmog-nico e a resistência da forma natural, primeira e simbólica. O artista busca uma medida essencial, "sem influência, sem estrangeiros e colonizadores", afirma.

A obra de Roberto Evangelista politiza o olhar da Amaz-nia no horizonte da sobrevivência. Diante de uma natureza singular e de sua riqueza cultural, na problematizaçâo da Amaz-nia prevalecem abordagens fenomênicas (o grau zero da natureza na obra de Waltércio Caldas) e político-antropológicas (a noçâo de voz do gueto para Cildo Meireles e país submerso de Emmanuel Nassar). Evangelista opera sobre a totalidade e o contínuo de devastações das queimadas, massacres de índios e de populações caboclas, falência da cultura ocidental. No entanto, essa 'paisagem de destroços' nâo é a cena da melancolia, já que a posiçâo de Evangelista é estabelecer uma fissura na história como processo de abandono e agenciamento de recalques que (auto)vitima a Amaz-nia. Sua perspectiva fenomênica, sem idealizações, é impregnada desse inescapzvel pathos. Nós vivemos com drama e aprendemos com a tragédia, diz o artista.

1 Essa obra precede em dois anos o Manifesto do Rio Negro (1978) de Pierre Restany e Frans Krajcberg e está adiante do processo internacional de discussâo da devastaçâo da Amazônia, que só se amplia depois da falência de grandes projetos agroindustriais de companhias multinacionais.
2 "Um país esquecido dentro do país", in Visâo, 29 de maio de 1978.
3 Como nos rios de cuias das instalaç§es Mater Dolorosa in Memoriam II (Sobre a Criaçâo e Sobrevivência das Formas) e Resgate (1992).


Cronologia

Roberto Evangelista nasceu em Manaus, Amazonas, Brasil. Vive e trabalha em Manaus, Brasil.

Exposições individuais e coletivas

1994
A Paixâo Segundo Evangelista, Centro de Artes Chaminé, Manaus, Brasil; Gaia-Gaiola, instalaçâo com ready-made para crianças, da série Utopia, Centro de Artes Chaminé, Manaus, Brasil.
1992
O Resgate, América, Bride of the Sun, Royal Museum of Fine Arts, Antuérpia, Bélgica; O Resgate, instalaçâo e happening no Rio Negro, Eco 92, Manaus, Brasil.
1990
Transcontinental - Nine Latin American Artists, Ikon Gallery, Birmingham, Inglaterra.
1990/91/92
Aos Elementos, instalaçâo com Regina Vater, para projeto itinerante Revered Earth, The Contemporary Arts Museum, Houston, Estados Unidos.
1989
Homenagem a Chico Mendes, instalaçâo com Regina Vater, Nova York, Estados Unidos; Travels: Here and There, Clocktower Gallery, Nova York, Estados Unidos.
1986
Pré-escultura Gotham City com artistas amazonenses, Projeto Madeira, Brasil.
1985
A Natureza em Preto e Branco, Coletiva de artistas amazonenses, Galeria Afrénio de Castro, Manaus, Brasil.
1983
Arte Moderna no Salâo Nacional 1940-1982, VI Salâo Nacional de Artes Plásticas, sala especial, Rio de Janeiro, Brasil; performance com o grupo de dança NUDAC, hall do Teatro Amazonas; Afrescos Pré-Mondrianescos, I Festival do Vídeo de San Sebastian, vídeo 12þ, Espanha.
1982
Play time: Infinitude, V Salâo Nacional de Artes Plásticas, vídeo 3þ, Rio de Janeiro, Brasil.
1981
IV Salâo de Artes Plásticas, vídeo experimental, Rio de Janeiro, Brasil.
1980
Vídeos experimentais, Manaus, Amazonas.
1977
Nikz Uilcana, XIV Bienal Internacional de Sâo Paulo, Brasil.
1976
Mater Dolorosa, in Memoriam I, 10 Anos Zona Franca de Manaus, Amazonas, Brasil; Mano, Manz - Das Utopias, Bienal Nacional, Sâo Paulo, Brasil.


Prêmios

1982
Prêmio Viagem ao País, Mater Dolorosa, in Memorian II (da criaçâo e sobrevivência das Formas), V Salâo de Artes Plásticas, Rio de Janeiro, Brasil.
1981
Melhor montagem, I Festival de Filmes para TV, Mater Dolorosa, in Memorian II (da criaçâo e sobrevivência das Formas), Rio de Janeiro, Brasil.
1980
Prêmio do Governo do Estado do Amazonas, Manaus, Brasil.
1976
Prêmio do Ministério das Relaç§es Exteriores, Bienal Nacional, Sâo Paulo, Brasil.