O cala a boca de Ricky

Em discurso agressivo, apresentador do Globo de Ouro veta política, mas atrizes falam sobre voto e feminismo

Beatriz Amendola, Débora Miranda e Guilherme Machado Do UOL, em São Paulo Paul Drinkwater/NBCUniversal Media, LLC via Getty Images
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"Vocês não sabem nada sobre o mundo real. A maior parte de vocês passou menos tempo na escola do que a Greta Thunberg. Se você ganhar um prêmio, suba ao palco, agradeça ao seu agente, agradeça a Deus e dê o fora." O humorista Ricky Gervais, que apresentou na noite de ontem a 77ª edição do Globo de Ouro, disparou contra tudo e contra todos. E seu pedido mais controverso foi esse: que os atores, ao vencer, não usassem o palco para fazer discursos políticos.

A fala de abertura do comediante durou pouco mais de sete minutos e foi recebida com risos nervosos e expressões de incredulidade dos famosos na plateia. Mas, apesar do desconforto, algumas atrizes ousaram levantar questões sociais e políticas ao serem premiadas. A importância do voto, a representatividade feminina e até mesmo a grave situação dos incêndios na Austrália foram citadas.

Michelle Williams, que venceu como melhor atriz pela minissérie Fosse/Verdon, emocionou o público ao falar de como as mulheres precisam transformar comportamentos. Patricia Arquette, premiada pela minissérie The Act, também se posicionou.

Os escândalos sexuais na indústria do cinema também foram lembrados por Gervais, que ainda falou sobre racismo, diversidade e os casos de estrelas que pagaram para que seus filhos entrassem em grandes universidades. "Lembrem-se: são só piadas", fez questão de ressaltar.

Quanto às séries e aos filmes que disputavam os prêmios da noite, Era uma vez em... Hollywood se sagrou como a maior vencedora, levando três estatuetas. A surpresa ficou por conta de 1917, eleito melhor filme de drama. E a decepção foi a Netflix, que teve suas produções e seus atores indicados a 34 prêmios, mas acabou vencendo só dois. Veja a lista completa de vencedores.

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Veja a íntegra do discurso de Gervais:

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A importância das escolhas

Foi de Michelle Williams o discurso mais poderoso desta edição do Globo de Ouro. Ao ser premiada como melhor atriz pela minissérie Fosse/Verdon, ela subiu ao palco para falar de escolhas. "Estou grata pelo reconhecimento das escolhas que eu fiz [profissionalmente] e também por viver em um momento na nossa sociedade em que há escolhas. Porque, como mulheres e garotas, coisas podem acontecer com nossos corpos que não são nossas escolhas. Fiz o meu melhor para viver a vida que escolhi, e não apenas uma série de acontecimentos", afirmou.

A atriz destacou que trilhou seu caminho de acordo com suas vontades e celebrou a liberdade de religião e de expressão. "Mulheres de 18 a 118 anos, quando for a hora de votar, por favor, façam isso de acordo com seus interesses. É isso que os homens vêm fazendo há anos, e por isso o mundo se parece tanto com eles. Não se esqueçam de que somos o maior corpo eleitoral deste país. Vamos fazer com que ele se pareça mais conosco."

Outra que incentivou o público a votar foi a atriz Patricia Arquette, que colocou os Estados Unidos como um país "à beira da guerra". "Um presidente tuitando ameaças de 52 bombas, incluindo em espaços culturais. Jovens arriscando suas vidas viajando pelo mundo. Pessoas não sabendo se bombas vão cair nas cabeças de suas crianças, e a Austrália pegando fogo", enumerou. "Implorem a todos que vocês conhecem para que votem em 2020."

A australiana Cate Blanchett também falou sobre a situação e lembrou o trabalho dos voluntários que estão enfrentando o fogo. "Quando um país enfrenta um desastre climático, todos enfrentamos um desastre climático."

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Mesmo esquecidas, elas fizeram história

Em contraste com os discursos poderosos das mulheres, o Globo de Ouro de 2020, em sua maior parte, falhou em reconhecê-las. Apenas dois anos após Natalie Portman chamar a atenção para o fato de todos os indicados a melhor diretor serem homens, nenhuma cineasta mulher entrou na disputa da categoria —incluindo aí Greta Gerwig, que vem recebendo elogios da crítica especializada por seu trabalho em Adoráveis Mulheres.

A ausência é especialmente problemática considerando que 2019 registrou uma participação recorde de diretoras entre as cem maiores bilheterias do ano. Mulheres comandaram 10% dessas produções - número baixo, mas que representa um salto em relação aos 4,5% de 2018.

O fato foi alvo de uma das piadas ácidas de Ricky Gervais ao longo do evento: "Nenhuma mulher diretora foi indicada neste ano. Isso é ruim. Eu tive uma conversinha com a HFPA, e eles me garantiram que isso nunca vai acontecer de novo. Em conluio com os grandes estúdios, a associação concordou em voltar a como as coisas eram, e mulheres diretoras não serão mais contratadas. Isso vai resolver o problema. Obrigado".

Entre os filmes indicados, também era notável o pouco espaço dado às protagonistas mulheres —as exceções foram História de um Casamento, com Scarlett Johansson, e Entre Facas e Segredos, com Ana de Armas.

Apesar disso, o Globo de Ouro teve espaço para uma vitória histórica. A compositora Hildur Guðnadóttir se tornou a primeira mulher a vencer sozinha na categoria de trilha sonora, com Coringa. Antes dela, a única premiada havia sido Lisa Gerrard, que dividiu o reconhecimento por Gladiador com Hans Zimmer.

Foi positivo, ainda, o reconhecimento de Fleabag, a grande vencedora das categorias de TV. Criada e protagonizada por Phoebe Waller-Bridge, a trama levou os prêmios de melhor série de comédia e melhor atriz —um feito e tanto para uma história que tem uma protagonista hilária, mas cheia de falhas, bem fora da caixinha à qual os papéis femininos costumam ser reservados. Sobrou um agradecimento especial para o ex-presidente americano Barack Obama, que elogiou a série e apareceu nela de uma forma, digamos, inusitada.

Divulgação

Derrotada da noite

Quando a lista dos indicados saiu, os streamings comemoram uma presença massiva entre os concorrentes ao Globo de Ouro. Mas, o que deveria ser festa, acabou com um sabor amargo para a Netflix.

Ao todo, o serviço de streaming teve 34 indicações ao Globo de Ouro, motivo de festa. Depois da cerimônia, apenas dois prêmios ficaram com a Netflix - Laura Dern, em História de um Casamento, como atriz coadjuvante em filme dramático, e Olivia Colman, em The Crown, como melhor atriz em série dramática.

Nos principais prêmios da noite, a Netflix conseguiu ser superada pela HBO e pela Amazon, que venceram com Chernobyl e Fleabag, respectivamente, em drama e comédia.

Se duas produções da Netflix venceram, outras dez saíram sem nenhum prêmio - Living with Yourself, The Spy, Russian Doll, Dead to Me, O Método Kominsky, The Politician, Inacreditável, O Irlandês, Dois Papas e Meu Nome é Dolemite.

Mario Anzuoni/Reuters

Os grandes vencedores

Não teve para ninguém: a noite foi de Quentin Tarantino, que viu seu Era uma Vez em... Hollywood, uma verdadeira carta de amor ao cinema, emplacar vitórias em três categorias: filme de comédia/musical, roteiro e ator coadjuvante, para Brad Pitt.

O cineasta, que antes só havia sido premiado por seus roteiros de Pulp Fiction e Django Livre, usou seu discurso para reconhecer seus atores e parabenizar a si mesmo por ter escrito o roteiro do filme todo sozinho: "Eu consegui!".

Atrás de Era uma Vez... veio a grande surpresa da noite, 1917, que levou para casa dois prêmios: melhor filme dramático e melhor diretor para Sam Mendes, desbancando a concorrência mais pesada da noite. Empatados com ele vieram Coringa, que saiu com um esperado prêmio de melhor ator em filme dramático para Joaquin Phoenix e outro de melhor trilha sonora, e Rocketman, vencedor de melhor ator em comédia (Taron Egerton) e canção original (I'm gonna love me again, de Elton John).

Nas categorias de TV, as grandes vitoriosas foram, com dois troféus cada, Fleabag, Succession (série dramática e ator, para Bill Cox) e Chernobyl (minissérie e ator coadjuvante, para Stellan Skarsgard).

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Kevin Winter/Getty Images

Deu zebra!

O termo zebra é normalmente usado para definir aquele momento imprevisível ou uma vitória inesperada. Pois as zebras estavam galopando por todo lado nesta edição do Globo de Ouro.

Talvez a maior de todas as surpresas tenha sido a vitória de 1917 como melhor filme dramático —prêmio mais cobiçado da noite—, desbancando os favoritos O Irlandês e Coringa.

Mas as zebras começaram bem antes disso. O Link Perdido conseguiu superar Frozen 2 e Toy Story 4, que pareciam estar brigando entre si para ver quem levaria o troféu de melhor filme de animação. A vitória surpreendeu, inclusive, os realizadores do filme da produtora Laika, que simplesmente não conseguiram disfarçar o choque por terem sido os escolhidos.

Na categoria de diretor, a surpresa também foi geral. Aqueles que esperavam uma recompensa a Martin Scorsese por seu trabalho em O Irlandês, ou talvez um reconhecimento a Todd Philipps pelo engajamento que provocou em Coringa, assistiram ao nome de Sam Mendes, de 1917, ser anunciado. Em seu discurso, Sam falou sobre a importância de Scorsese para o cinema: "Todo diretor vive à sombra de Scorsese".

Na atuação, a zebra ficou por conta da vitória de Taron Egerton, de Rocketman, como melhor ator em filme de comédia ou musical —mesmo concorrendo com nomes fortes, como Leonardo DiCaprio e Eddie Murphy.

Se nas categorias de cinema as surpresas foram várias, nas de TV, tudo correu mais dentro de expectativas.

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Divulgação/IMDb

O importante é competir

A noite também deixou um gosto amargo para candidatos que eram considerados favoritos, mas não conseguiram alcançar as estatuetas douradas. Para começar, dois dos maiores indicados da noite, História de um Casamento, com seis indicações, e O Irlandês, com cinco, saíram de mãos abanando.

Aliás, a Netflix teve uma noite bastante difícil. Muito se falou sobre as 34 indicações recebidas pela gigante do streaming e de como isso poderia indicar que o Globo de Ouro estava abraçando as novas formas de produção de audiovisual. Entretanto, a Netflix teve apenas duas vitórias em toda a noite, pelas atuações de Laura Dern, com História de um Casamento, e de Olivia Colman por The Crown.

A Disney também não se deu muito bem nos prêmios. Apesar de ter três indicados na categoria melhor filme de animação, a empresa do Mickey não conseguiu coroar o vencedor. Pior, perdeu até na categoria de melhor canção original, onde Into the Unknown, de Frozen, e Spirit, de O Rei Leão, estavam indicadas. Ambas foram superadas por (I'm Gonna) Love me Again, do filme Rocketman.

Martin Scorsese é outro que ficou entre os grandes derrotados da noite. Muitos chamaram O Irlandês de sua obra-prima, mas ele assistiu ao filme perder prêmio atrás de prêmio, tendo ele mesmo ficado sem sua estatueta de diretor.

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