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'Brasil vive duas pandemias: o negacionismo do governo e o coronavírus', salienta Lô Borges

O cantor e compositor Lô Borges - Bárbara Dutra/Divulgação
O cantor e compositor Lô Borges Imagem: Bárbara Dutra/Divulgação

13/07/2020 08h27

Num primeiro momento, a pandemia de coronavírus "cortou a onda" e o "ímpeto criativo" do músico mineiro Lô Borges. "Qual o sentido de continuar compondo com todo mundo tendo que ficar em casa e com essa doença ameaçadora", pergunta o coautor do genial Clube da Esquina, que agora voltou a compor e prepara um novo disco. Em entrevista exclusiva à RFI, ele também fala sobre o fenômeno das lives, política cultural e critica a gestão do governo brasileiro nessa crise.

Além do célebre Clube da Esquina, assinado em parceria com Milton Nascimento, em 1972, e marco do movimento musical mineiro, Lô Borges é autor de discos clássicos da música brasileira, como o "Disco do Tênis", e de músicas de sucesso como "Quem sabe isso quer dizer amor". A pandemia do coronavírus interrompeu bruscamente um momento de muita criatividade na carreira do músico.

Ele se preparava para lançar seu mais novo disco "Dínamo", em março, quando a pandemia interrompeu tudo. "Entrei numa fase de negação da música". Depois de mais de um mês em total quarentena, sem nem tocar, Lô Borges voltou a compor. Ele prepara um novo disco com músicas inéditas e letras do parceiro de sempre, o irmão Márcio Borges.

Lô continua respeitando a quarentena em sua casa, em Belo Horizonte. Ele defende o isolamento social, que segundo ele, é a "minha vacina enquanto uma vacina contra a covid-19 não for descoberta". O músico demorou, mas acabou embarcando também no fenômeno das lives. Ele fez duas apresentações ao vivo na internet (em 14 de maio e 2 de julho) sozinho, acompanhado apenas de seu violão e com o auxílio de um técnico. "Um momento muito solitário" que o levou a fazer uma analogia com o corona: "você sabe que tem o público assistindo, mas você não vê; o corona você não vê, mas sabe que tem".

Devido ao grande consumo de drogas na juventude, Lô Borges não imaginava que viveria tanto tempo e agora, com a pandemia, "tem ainda mais motivos de estar feliz por estar vivo até hoje porque tá morrendo muita gente. Esse país que eu vivo é um país que não leva a sério isso. O governo não orienta, pelo contrário, ele desorienta, ele nega, são uns negacionistas", critica.

Leia a entrevista completa de Lô Borges

RFI: Esse tempo suspenso da quarentena é favorável à criação?

Lô Borges: "Eu tive duas fases na pandemia. A primeira fase, eu tinha acabado de lançar um disco na primeira quinzena de março, chamado "Dínamo", com parceria com o Makely Ka. Tava ensaiando e preparado para fazer o show de lançamento do disco, em 27 de março. Eis que surge a quarentena, a pandemia, foi tudo cancelado. Fomos todos para casa e este disco vai entrar para a história como um disco que praticamente não foi nem lançado. Eu cheguei na minha casa e tive uma cortada de onda. Achei que essa coisa de quarentena, pandemia, era uma coisa que eu não me sentia muito bem com isso. A primeira fase foi de negação. Abandonei o violão, abandonei o piano, parei de tocar, durante um mês e meio. Meu violão estava de quarentena, minha guitarra, meu piano, aqui estávamos todos de quarentena. Eu não me senti nem um pouco criativo. Essa foi a primeira fase. A segunda fase foi uma história mais legal porque eu voltei a ter vontade de compor, ter vontade de tocar violão, de tocar guitarra, de tocar piano. Que ótimo que na segunda fase voltou tudo a mil por hora. Eu já tinha meio que combinado com meu irmão Marcinho, no ano passado, que a gente iria fazer esse disco em 2020. (Agora) Faço música sempre, o Marcinho manda as letras, e a gente está com o disco para ficar pronto antes do fim do ano.

Você terá então dois discos para divulgar depois da pandemia?

"Antes do "Dínamo", eu tinha feito, um ano antes, um disco, "Rio da Lua", todo com letras do Nelson Angelo. Eu estava numa fase muito produtiva. Estava fazendo um disco por ano. 20 músicas a cada três meses. Por isso teve essa primeira fase de negação, porque foi uma cortada de onda. Falei, qual o sentido de continuar compondo agora que todo mundo vai ter que ficar em casa, todo mundo tendo essa doença ameaçadora, esse vírus ameaçador? Se Deus quiser, no ano que vem, eu vou estar divulgando o "Dínamo", de 2020, o "Rio da Lua", de 2019, e esse com o Marcio em 2021, sendo que antes de 2021 vou lançar um single desse disco.

Você também participou das primeiras lives da sua vida. Como foi?

"Tem uma letra do Marcinho que fala 'essa hora bizarra'. A live foi uma possibilidade de você continuar sendo criativo e de lidar com o público. Há uma diferença. Ser criativo é compor, você fazer show é confirmar tudo o que você fez. A live é uma confirmação de toda a minha obra, só que eu me senti muito estranho. Eu fiz até uma analogia com o corona. Na live você está sozinho em casa, só com o técnico, sem banda. Você sabe que tem o público assistindo, mas você não vê, o corona você não vê, mas sabe que tem."

Parodiando o Milton, a live é o jeito atual de "do artista ir aonde o povo está"?

"Exatamente, a gente está indo aonde o povo está. A gente só não vê o público. Faço questão de fazer a live sozinho, voz e violão. Não estou vendo ninguém, só o técnico. E muito solitário uma live."

Como vê a evolução no pós-pandemia?

Do ponto de vista dos artistas, vai demorar muito ainda (voltar ao normal) porque os teatros vão ter lotação para 30% das plateias. Os artistas não vão poder lotar o teatro, ganhar dinheiro. Vai ser uma coisa diferente. Vai ter que ter muito patrocínio, vai ter que contar com a iniciativa privada, com entidades importantes. Eu acho que isso vai demorar um pouco até se descobrir uma vacina. Enquanto não se descobre uma vacina, a minha vacina é o isolamento social.

Pode surgir um modelo híbrido entre as lives e o show presencial?

Para ser viável, - pagar os técnicos, os músicos, os artistas, o produtor - tem que contar com a iniciativa privada, ou algum tipo de patrocínio. Senão, fica alguma coisa que a pessoa não consegue sobreviver da música. Os artistas são os que vão demorar mais a voltar a atuar em cena, na sociedade. Os bares estão abrindo, os teatros não estão abrindo. Isso é uma coisa que eu posso vir a participar, mas sempre sabendo que para dar certo tem que ter pessoas interessadas em divulgar a cultura, patrocinar a cultura. Quem patrocina a cultura historicamente no Brasil é o publico que lota os teatros para ver os artistas. Mas sem o publico, quem vai ter que entrar nessa são as entidades.

Recentemente você deu uma entrevista para a Folha dizendo que se sentia muito feliz por continuar vivo. Como está esse sentimento agora com a pandemia?

"Agora mais ainda. Antes, eu só tinha a minha comorbidade que era o meu passado de drogado. Dos 20 anos aos 40 passei desenvolvendo minha carreira artística, mas como todo mundo envolvido com drogas, com coisas pesadas. Foi nesse sentido que eu falei para a 'Folha' que estava muito feliz de estar vivo até hoje. Agora, com essa pandemia, eu sinto mais motivos ainda para achar que estou muito feliz de estar vivo até hoje porque está morrendo muita gente, porque esse país que eu vivo é um país que não leva a sério isso. Não as pessoas, mas o governo que não orienta. Pelo contrário, ele desorienta, ele nega, são uns negacionistas. O Brasil está fazendo flexibilização no pico da pandemia. Acho muito irresponsável o poder público, o governo, a maneira como eles estão lidando com a pandemia nessa linha negacionista."

Você tem alguma previsão de turnê internacional, vir à França por exemplo?

Tenho, desde que o Brasil seja aceito como um país confiável que autorizem o desembarque de turistas em países que são mais sérios. O Brasil é um país maravilhoso. Eu amo meu país, mas o Brasil teve duas pandemias. A pandemia do governo e seu negacionismo com o coronavírus, e a pandemia propriamente dita."