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De Tim Maia a Jack Bauer, Barbarella agradou a todos em Copacabana

Google Street View
Imagem: Google Street View

Saulo Pereira Guimarães

Colaboração para o UOL, do Rio

30/06/2020 04h00

A noite ficou mais triste na esquina da Avenida Prado Junior com a Rua Ministro Viveiros de Castro, em Copacabana. Após 44 anos, a boate Barbarella anunciou o "encerramento por definitivo de suas atividades" no último dia 24. Fechado desde 16 de março por causa do coronavírus, o lendário inferninho não resistiu à combinação de isolamento social, crise econômica e concorrência de sites pornográficos.

Segurança da casa, Fabio Ricardo —mais conhecido como Bebezão— conta que o clube sofria com o menor número de turistas no Rio nos últimos tempos. De 3 anos para cá, a boate deixou de abrir todos os dias e passou a fechar aos domingos. O número de funcionários caiu pela metade desde 2015. Ainda assim, marchinhas e hits de axé animaram o local no último Carnaval:

O movimento foi bom, mas a casa já não bombava mais como antes. Foi uma boa despedida

Boate das estrelas

Com nome de clássico do cinema, a Barbarella cansou de receber estrelas. Serviu de cenário para o filme "Chacrinha: O Velho Guerreiro" e novelas de TV. Em 2007, o ator Kiefer Sutherland —o Jack Bauer da série "24 horas"0- tirou um tempinho para ir ao local com um amigo e levar duas moças de lá para uma noite no Copacabana Palace, conforme noticiou o "Jornal do Brasil".

Recorte do Jornal do Brasil que fala sobre a passagem de Kiefer Sutherland, de "24 Horas", pela Barbarella - Reprodução - Reprodução
Recorte do Jornal do Brasil que fala sobre a passagem de Kiefer Sutherland, de "24 Horas", pela Barbarella
Imagem: Reprodução

O baterista do U2 Larry Mullen Jr. foi honrado com um show particular pelas dançarinas da boate em janeiro de 1998. Em entrevista ao jornalista Bernardo Araújo, do Globo, em 2008, os roqueiros do Scorpions se revelaram fãs do inferninho carioca.

Tim Maia foi outro ilustre frequentador, de acordo com a "Tribuna da Imprensa". Em 1994, ele contou que costumava passar por lá depois dos shows para selecionar "quatro ou cinco apetitosas modelos para se divertirem na minha casa".

Tim maia barbarella - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

(Que comentário nada a ver no final, hein, Tim? Não ficou legal isso não).

De tão queridas, as prostitutas que batiam ponto na boate foram eternizadas por Cazuza na canção "Só As Mães São Felizes", de 1985:

Já frequentei grandes festas nos endereços mais quentes / Tomei champanhe e cicuta com comentários inteligentes mais tristes que os de uma puta no Barbarella às 15 pras 7

É o fim de um templo da sacanagem.

A night e suas regras

No coração de uma área dominada pela prostituição, a Barbarella funcionava de 21h30 às 4h. Quem atravessava o toldo verde e pagava os R$ 80 tinha direito a 2 drinks nacionais (ou 1 importado ou 3 cervejas) e um lugar nas mesas de toalha vermelha para assistir a shows de dançarinas só de calcinha.

Nos tempos áureos, três delas faziam strip tease toda noite às 3h. Ultimamente, isso já não acontecia mais.

Com capacidade para 270 pessoas, a Barbarella chegava a receber 80 mulheres por noite. Ninguém fazia o programa ali, mas o cliente que saísse com alguém pagava R$ 80. Além das prostitutas, o público da casa abrangia de políticos a estrangeiros de passagem pelo Rio. Bebezão conta que, apesar de tudo, o ambiente tinha suas regras:

Era raro ver homem lá dentro de bermuda e chinelo. Todas as moças que frequentavam usavam sapato alto. Os clientes mais íntimos podiam pedir músicas ao DJ. Eventualmente, rolava uma briga, como qualquer lugar onde há venda de bebidas. Durante as olimpíadas, dois brutamontes americanos de assustar deram problema na hora de pagar. Mas aí, alguém agarrou no pescoço de um deles e foi tudo resolvido

Quem foi, não esquece

Quem já foi à Barbarella não esquece. Artista visual Ana Fontelles esteve no local em abril de 1994. Ela e uma amiga saíam de uma das primeiras raves realizadas na cidade, na Lagoa, quando aceitaram a carona de um rapaz que, após doses de tequila no Empório, em Ipanema, fez o convite inusitado. Da boate, ela lembra do ambiente escuro e lotado, entre outros detalhes:

Veio um monte de gringo em cima da gente, um cara perguntando quanto era meu programa. A coisa ficou meio insustentável para duas meninas. A gente largou o cara lá na boate e fomos embora. Quando saímos, cruzamos com uma prostituta que nos perguntou 'vocês são novas aqui?'. Aí, a gente virou uma para a outra, disse a ela 'sim' e saiu visitando aqueles inferninhos no entorno

A lenda

De acordo com Bebezão, a boate tinha uma lenda:

Anos atrás, houve um incêndio na Barbarella e uma boneca que estava lá não pegou fogo. Desde então, todo ano, nós funcionários trocávamos a roupa dela no aniversário da casa, em outubro

Não há registros de incêndios no inferninho. Porém, a "Tribuna da Imprensa" noticiou em fevereiro de 1996 que uma prostituta que brigava por um cliente com uma colega na boate vizinha Hi-Fi decidiu pôr fogo no estabelecimento onde trabalhava e assustou as moças que estavam na Barbarella, que saíram correndo "peladas" pela vizinhança. Aparentemente, a história vem daí.

'Tom Jobim já tocou piano em boate'

O fechamento da Barbarella sinaliza o fim da era das boates, que fizeram história na noite do Rio. O surgimento das casas está ligado ao fechamento dos cassinos, em 1946. Sem os antigos espaços para se apresentar, músicos e maestros migraram para os clubes que pipocavam pela cidade e apostavam na boa música como trunfo para se firmar.

Autor do livro "Rio Cultura da Noite" e criador de espaços como a Casa da Matriz e Teatro Odisseia, Léo Feijó diz sobre o tema o seguinte:

As boates de hoje são herdeiras da tradição do Beco das Garrafas, dos anos 1950. Tom Jobim já tocou piano em boate. Eram locais que tinham como missão investir em música. Na década de 1960, empresários como Ricardo Amaral criaram casas como a Sucata, com uma estrutura melhor, que passaram a abrigar o circuito musical e esses locais mais antigos deram origem a espaços como Bolero, Cicciolina e Barbarella, mais relacionadas a essa questão do erotismo

As 50 boates de Copacabana

As décadas de 1970 e 1980 marcaram o auge das boates, de acordo com Léo. Só em Copacabana, havia cerca de 50 casas do tipo. A violência na cidade enfraqueceu o movimento nos anos 1990 e, na década seguinte, o número de casas caiu para dez —chegando a apenas 5 em 2016.

Segundo Bebezão, a internet dificultou a vida deste tipo de estabelecimento:

O que enfraqueceu muito as boates foram os sites. Muita gente ia para se divertir com mulher. O site oferece a mesma coisa e não cobra ingresso. Para muitos, a boate deixou de valer a pena

Lugares de transgressão

Para Léo, a crise econômica no Rio e o número reduzido de turistas nos últimos anos contribuíram para o enfraquecimento da cena. Ele afirma que este tipo de negócio só conseguiria se manter hoje se o Poder Público pudesse fornecer linhas de crédito e outros recursos, mas não acredita que isso vá acontecer:

Se quem entende o valor das boates se mobilizasse, elas ainda teriam alguma chance. Porém, esses espaços geram muita memória afetiva, mas pouca mobilização. Quem vai querer investir nisso agora? As boates eram lugares de transgressão, com outra proposta de interação, de troca —como existe em cidades como Amsterdã e Nova York. Agora, este é mais um circuito que acaba